Camila Boehm*
Pelo menos 24 defensores de direitos humanos
foram assassinados no Brasil nos quatro primeiros meses deste ano. Desses, 21
defendiam direitos agrários e faziam parte de movimentos e organizações de luta
pela terra.
Os dados foram levantados pelo Comitê Brasileiro
de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos – grupo formado por entidades da
sociedade civil, como a Artigo 19, Justiça Global, a Comissão Pastoral da Terra
(CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
O levantamento foi enviado, por meio de
denúncia, à Organização das Nações Unidas (ONU) e à Organização de Estados
Americanos (OEA) com o objetivo de pressionar o governo brasileiro na proteção
dos defensores e na responsabilização dos culpados pelos crimes. O primeiro
documento foi encaminhado às organizações no dia 8 de março. Mas dois foram
enviados nos dias 11 e 27 de abril, totalizando o relato de 22 mortes.
É a primeira vez que o comitê faz o
levantamento, por isso não há dados do ano passado. Em todo o ano de 2015, foram
registrados 50 assassinatos no país relacionados a conflitos fundiários,
segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que faz o monitoramento desde 1985.
De acordo com a CPT, 90% dos casos ocorreram nos estados do Maranhão, Pará e de
Rondônia.
Povo
Guajajara
Entre os assassinatos levantados pelo comitê,
estão o de quatro indígenas do povo Guajajara, da Terra Indígena (TI)
Arariboia, no Maranhão, no intervalo de menos de um mês, entre os dias 26 de
março e 22 de abril. O povo protesta contra madeireiros ilegais que exploram a
área indígena.
No Dia do Índio, 19 de abril, Isaias Guajajara,
de 32 anos, foi assassinado a facadas no município de Amarante do Maranhão,
próximo à terra indígena. Poucos dias depois, no Dia da Terra (22), o corpo de
Assis Guajajara, 43 anos, foi encontrado, em um riacho, com marcas de
violência.
Antes, no dia 11 de abril, Genésio Guajajara, 30
anos, foi morto a pauladas e com um tiro no peito, também na zona urbana de
Amarante do Maranhão. Ele estava na cidade para receber a cesta básica distribuída
pela Fundação Nacional do Índio (Funai). E com apenas 16 anos, o indígena
Aponuyre Guajajara foi morto a tiros no mesmo município.
Segundo o Cimi, há pouca fiscalização no local e
os crimes não são investigados. O território, que é demarcado e habitado pelos
Guajajara e pelos Awá, sofre pressão dos madeireiros, o que traz clima de
insegurança.
“O primeiro motivo que avaliamos para tantos
assassinatos e uma crescente violência contra os povos indígenas é justamente a
morosidade do Estado em responder às demandas urgentes, que são as demarcações
de terras, para sanar os conflitos”, disse Alessandra Farias, assessora
jurídica do Cimi. A entidade ressalta que os indígenas são constantemente
ameaçados em diversos estados e têm os recursos de seus territórios explorados
ilegalmente.
O relatório Violência contra os Povos Indígenas
no Brasil, do Cimi, mostra que a presidenta Dilma Rousseff, atualmente afastada
do cargo, não assinou nenhuma homologação de terra indígena em 2014, apesar de
pelo menos 21 processos de demarcação de terras estarem aguardando assinatura.
Dados sobre a homologação em 2015 devem ser divulgados pela entidade a partir
de junho.
Em 2014, o Cimi identificou 118 casos de omissão
e morosidade na regulamentação de terras, mais do dobro do que foi registrado
em 2013 (51 ocorrências). O Pará é o estado com o maior número de ocorrências
de omissões e morosidade na regulamentação de terras (42). “O não
reconhecimento das terras indígenas está diretamente ligado às intenções do
governo federal de construir grandes hidrelétricas, como no caso da São Luiz do
Tapajós que, se construída, alagará aldeias, florestas e cemitérios da Terra
Indígena Sawré Muybu, do povo Munduruku”, diz o relatório do Cimi.
Conflitos
agrários
Os conflitos agrários atingem não só indígenas,
mas integrantes de movimentos sociais. O pesquisador da Justiça Global, Antonio
Neto, disse que os assassinatos ocorridos no campo “mostram primeiro uma dívida
histórica do Estado brasileiro em resolver o problema agrário”.
“Não adianta pensarmos em políticas paliativas
de proteção e cuidado para os defensores de direitos humanos no campo se a
gente não resolve essa dívida histórica com a questão agrária no país”,
afirmou.
Pesquisador da questão agrária no Brasil, o
professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo (USP), Ariovaldo Umbelino de Oliveira, atribui a atual violência
no campo à ausência de uma real reforma agrária no país e à queda no número de
novos assentamentos.
Segundo o professor, houve dois picos de
assassinatos decorrentes de conflitos no campo no país: em 1985, durante o
governo de José Sarney, na aprovação do 1º Plano Nacional de Reforma Agrária
(PNRA). No mesmo ano, latifundiários criaram a União Democrática Ruralista
(UDR), a fim de defender seus interesses e se contrapor ao plano.
Neste ano, o número de assassinatos por causa de
conflitos no campo chegou a 139. Em 1986, foram 122 assassinatos e, em 1987,
133. Nos anos seguintes, o número foi caindo, chegando a 21 assassinatos em
2001.
Conforme Oliveira, já em 2003, quando foi
apresentado o 2º PNRA, os assassinatos voltaram a crescer e atingiram a marca
de 73. No ano anterior, foram 43 mortes. “Lá atrás [a ocorrência dos
assassinatos] era para inviabilizar a reforma agrária. Aqui [atualmente] é
porque a reforma agrária não foi feita. A ausência da reforma agrária é que faz
com que os conflitos cresçam”, avaliou Oliveira.
O professor contesta ainda a forma como os dados
da reforma agrária são divulgados pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra). Esses dados incluem não só os chamados novos
assentamentos, mas também casos de regularização fundiária (quando os posseiros
já ocupam a terra e o governo regulariza), de reconhecimento de assentamentos
antigos e ainda de situações em que o governo precisou reassentar um grupo em
razão de uma obra pública.
“Ele [Incra] conta tudo como reforma agrária. E
não é”, discorda Oliveira. “O governo Lula, no primeiro mandato, diz que
assentou 381 mil famílias, mas, em verdade, assentou apenas 150 mil famílias em
novos assentamentos”, disse o pesquisador em documento da Comissão Pastoral da
Terra. No segundo governo Lula, foram 65 mil famílias em novos assentamentos.
Já no primeiro governo Dilma, foram 31 mil, “o menor índice comparando até com
o tempo dos militares”, segundo o pesquisador.
Incra
Questionado se a violência do campo está ligada
à falta de reforma agrária, o Incra respondeu, em nota, que “os conflitos no
campo estão relacionados a diversos fatores, como a luta pelo acesso à terra,
disputas relacionadas à posse de áreas, desmatamento ilegal e desenvolvimento
de atividades econômicas na zona rural” e que não é correto falar em falta de
reforma agrária. O instituto informou que não faz o acompanhamento de conflitos
agrários e não dispõe de dados para verificar se houve ou não aumento da
violência no campo.
Sobre o modelo de divulgação dos dados da
reforma agrária, o Incra diz que considera como assentados “agricultores
sem-terra, posseiros, assalariados, parceiros ou arrendatários, além de
agricultores cuja propriedade não ultrapasse um módulo rural”.
“A reforma agrária não se restringe somente às
famílias assentadas em novas parcelas [chamados novos assentamentos]”, disse o
Incra, argumentando que a legislação reconhece todos esses como beneficiários do
PNRA.
MST
O levantamento Comitê Brasileiro de Defensores e
Defensoras de Direitos Humanos cita ainda as mortes de dois integrantes do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 7 de abril, no Paraná.
Segundo o relatório, cerca de 25 trabalhadores
circulavam de caminhonete e de motocicleta, dentro da área decretada pública
pela Justiça, fazendo uma ronda de rotina quando foram surpreendidos pelos
policiais e pelos seguranças privados da empresa Araupel.
De acordo com o MST, os policiais e seguranças
começaram os disparos. Conforme o movimento, os camponeses não estavam armados
e não houve troca de tiros. O relatório diz que “por quase duas horas a área
foi isolada pela Polícia Militar, impedindo o acesso de familiares, o socorro
aos feridos bem como o acesso de qualquer pessoa que quisesse documentar a cena
do crime”.
Além das mortes de Vilmar Bordim (44 anos) e
Leomar Bhorbak (25 anos), mais sete sem-terra ficaram feridos por disparos de
arma de fogo. As vítimas eram do acampamento Dom Tomas Balduíno, no município
de Quedas do Iguaçu (PR).
Na ocasião, a Polícia Militar informou que duas
armas de fogo foram apreendidas no local.
Sobre o caso, a polícia disse que duas equipes
da corporação acompanhavam um grupo de funcionários da empresa Araupel no
combate a um incêndio dentro de uma fazenda de celulose da companhia, ocupada
pelos sem-terra. Eles teriam sido vítimas de uma emboscada organizada por mais
de 20 integrantes do MST e teriam reagido ao ataque, o que resultou na morte de
dois camponeses e deixou feridos. Em relação ao acesso das famílias ao local, a
PM informou que foram enviadas equipes para resgatar os feridos e remover os
corpos.
O MST
negou que tenha havido um incêndio na região.
Na época, o MST disse ainda que dois integrantes
tiveram a prisão preventiva decretada, enquanto estavam internados no hospital,
após serem baleados pelas costas. De acordo com o movimento, eles não tiveram
acesso a advogado no momento em que estavam hospitalizados.
Recém-operados, um deles chegou a passar um fim
de semana detido, enquanto outro passou um dia preso na delegacia. Eles foram
acusados de porte ilegal de armas e conseguiram prisão domiciliar. Na ocasião,
a defesa dos dois sem-terra disse que não foram encontradas armas com os
camponeses.
Em entrevista à Agência Brasil, o advogado dos
rapazes, Claudemir Torrente Lima, afirmou que a prisão domiciliar foi revogada
em 29 de abril e foi concedida liberdade com restrições, que inclui o uso de
tornozeleira eletrônica. Ficou determinado ainda que ambos podem circular em
uma área de 15 quilômetros no entorno da residência de cada um e que devem se
recolher necessariamente em casa durante a noite.
No entanto, até o dia 13 de maio, os jovens
continuavam cumprindo a prisão domiciliar, porque a central de monitoramento
local não havia sido notificada da nova decisão. Os dois trabalhadores não
quiseram dar entrevista antes do fim de seus depoimentos à polícia.
A fazenda da Araupel foi palco de conflito desde
1996, quando dois integrantes do MST morreram em um confronto com funcionários
da empresa. A área, onde o MST está acampado atualmente, foi ocupada há cerca
de dois anos e é razão de briga judicial entre a empresa e o movimento.
Programa
de Proteção
Para o pesquisador da Justiça Global, Antonio
Neto, o Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), do
governo federal, é uma ferramenta importante no contexto dos conflitos
agrários.
O programa foi criado em 2004, iniciou os
trabalhos em 2005 e tem o objetivo de garantir a proteção de pessoas que
estejam em situação de risco ou ameaça devido à sua atuação na defesa dos
direitos humanos.
“Lutamos para que seja uma política efetiva e
que possa ajudar na articulação de medidas que façam com que a atuação dos defensores
e defensoras de direitos humanos seja protegida e garantida pelo Estado
brasileiro, para que eles possam fazer isso sob a luz da Constituição, que
prevê e garante que as pessoas possam atuar com liberdade e segurança sem ter
atentados contra sua vida”, disse Neto.
O programa foi instituído por um decreto
presidencial em 2007, mas, em abril deste ano, um novo decreto instituiu novos
moldes, sob comando da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério
das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. O
ministério foi extinto no governo do presidente interino Michel Temer. A
Secretaria de Direitos Humanos foi incorporada ao Ministério da Justiça.
A coordenadora da área de proteção e segurança à
liberdade de expressão da Artigo19, Julia Lima, ressaltou a importância do
mecanismo de proteção dos defensores. No entanto, ela lembrou que o programa
completou dez anos no ano passado e que tem ainda problemas estruturais. “A
primeira questão é que ele não tem um marco legal, então não é uma política
pública fixa e consolidada com as autoridades brasileiras”, disse.
Para a coordenadora, a falta de uma lei deixa o
programa vulnerável, podendo ser extinto a qualquer momento, “principalmente
nessa situação que estamos passando de conflitos políticos”. O Projeto de Lei
(PL) 4575/2009, que institui o programa, está parado na Câmara dos Deputados
desde 2011.
O programa dispõe de uma equipe técnica federal,
que atende a casos em todo o país. Há ainda equipes técnicas estaduais. Somente
os estados do Ceará, de Pernambuco, Minas Gerais e do Espírito Santo têm o
programa estadual funcionando.
Na Bahia e no Maranhão, há o convênio, mas a
equipe técnica ainda será contratada, por isso não está funcionando. O programa
de proteção fica a cargo da equipe técnica federal nos demais estados.
A equipe técnica federal atende atualmente a 193
pessoas, de acordo com a Secretaria de Direitos Humanos. Nos estados, até o mês
de março, eram 19 no Ceará, 52 em Minas Gerais, 34 em Pernambuco e 27 casos no
Espírito Santo, que tem uma metodologia diferente dos outros três estados e
pode incluir mais de uma pessoa em cada “caso”.
Antonio Neto ressalta que, por falta de uma lei
específica, a parceria com os estados depende da boa vontade do governo local e
da relação com o governo federal. “Não basta só uma canetada para que vire
efetivo, também tem um trabalho de discussão e convencimento nos estados para
que eles possam implementar a política, mas, sem dúvida, o marco legal é
importantíssimo para que essa política se espalhe para outros estados”,
acrescentou o pesquisador.