Na Amazônia, onde está a
maior parte da água do país, a Agência Nacional de Águas nunca exigiu o
planejamento do uso dos rios e mesmo assim concede outorgas
O
Ministério Público Federal apresenta hoje à Justiça Federal em seis estados da
Amazônia um pacote de ações para proteger os recursos hídricos da região, até
agora usados sem nenhum planejamento. A Agência Nacional de Águas vem
outorgando direitos de uso de recursos hídricos de maneira ilegal, porque, em
nenhum rio amazônico, foram instalados os comitês de bacia que são responsáveis
por planejar o uso das águas. Sem os comitês e sem planejamento, de acordo com
a legislação brasileira, a ANA não poderia emitir nenhuma outorga.
Nas ações, o MPF pede que a ANA seja proibida
de emitir a chamada Declaração de Reserva de Disponibilidade Hídrica para
quaisquer empreendimentos que estejam em licenciamento nas bacias dos rios
Tapajós, Teles Pires, Madeira, Ji-Paraná, Negro, Solimões, Branco, Oiapoque,
Jari, Araguaia, Tocantins e Trombetas. A necessidade de planejamento no uso dos
recursos hídricos é uma preocupação incluída na Constituição brasileira e,
mesmo assim, nunca foi aplicada na Amazônia, onde está o maior volume de águas
do país, tanto em corpos subterrâneos (aquíferos) quanto superficiais (rios).
O MPF cobra o cumprimento da Política
Nacional de Recursos Hídricos, instituída pela Lei das Águas (9.433/97). A
Política trouxe, como principais fundamentos, a convicção de que “a água é um
recurso natural limitado” (art. 1º, II) e de que, “em situações de escassez, o
uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de
animais (art. 1º, III)”. E tem, como objetivos, “assegurar à atual e às futuras
gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade
adequados aos respectivos usos”; “ a utilização racional e integrada dos
recursos hídricos”; e “a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos
críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos
naturais”.
A
Política Nacional também instituiu que a gestão dos recursos hídricos deve ser
descentralizada e contar com a participação do poder público, dos usuários e
das comunidades. Na Amazônia, onde boa parte da população tem a sobrevivência
baseada nos rios, essa participação se torna ainda mais relevante. Mas sem
comitês de bacia instalados, não há participação, nem planejamento, os
principais pilares da política. São os comitês de bacia, constituídos com
participação social, que podem fazer o plano de uso dos recursos hídricos.
O
Conselho Nacional de Recursos Hídricos, ciente dos riscos com a intensificação
das atividades econômicas nos rios amazônicos, aprovou, em 2011, o que o MPF
classifica de “arremedo” de planejamento, o Plano Estratégico de Recursos
Hídricos dos Afluentes da Margem Direita do Rio Amazonas (PERH-MDA). O Plano
previa que fossem instalados os comitês de bacia para que planejamentos fossem
formulados para cada bacia. Mas até hoje, passados três anos, nenhum comitê foi
instalado.
Questionada
pela organização International Rivers Network, a ANA admitiu, em documento
datado de setembro de 2014, que “não dispõe de acompanhamento sistemático da
implantação do PERH-MDA”. “De acordo com a Lei nº 9.437/97, em seu art. 37,
cabe ao Comitê de Bacia o acompanhamento da execução do Plano de Recursos
Hídricos da bacia e sugestão das providências necessárias ao cumprimento de
suas metas. Como inexiste tal colegiado com atuação que abranja toda a região
da MDA, foi criado pela Resolução CNRH nº 128/2011, um Colegiado Gestor com
responsabilidade de auxiliar na implementação do PERH-MDA. Destaca-se que tal
colegiado ainda não foi instalado.”, diz o documento.
Mesmo
assim, a agência vêm concedendo normalmente outorgas para usinas hidrelétricas,
mineradoras e empreendimentos agropecuários, em flagrante violação da
legislação. “A consequência das omissões e do arremedo de Plano de Bacia é que
a ANA vem concedendo, no processo de licenciamento ambiental de empreendimentos
na Amazônia, Declaração de Reserva de Disponibilidade Hídrica (DRDH), e sua
posterior outorga, sem levar em consideração a participação dos usuários e das
comunidades e o uso múltiplo das águas, fato de graves repercussões”, diz o MPF
nas ações.
Diz
a Lei de Águas: “Toda outorga estará condicionada às prioridades de uso
estabelecidas nos Planos de Recursos Hídricos e deverá respeitar a classe em
que o corpo de água estiver enquadrado e a manutenção de condições adequadas ao
transporte aquaviário, quando for o caso. A outorga de uso dos recursos
hídricos deverá preservar o uso múltiplo destes.” Tudo vem sendo desrespeitado,
principalmente em empreendimentos hidrelétricos na Amazônia.
“A
falta de comitês de bacia e de planos de recursos hídricos de cada bacia
hidrográfica na Amazônia faz com que a decisão administrativa seja
centralizada, sem qualquer controle social. As águas da bacia ficam asseguradas
a apenas um uso: para o setor elétrico. Todos os demais, como, por exemplo,
transporte, turismo, abastecimento, dessedentação, etc ficam prejudicados. O
prejuízo será sentido não só por esta geração, mas compromete a utilização da
água pelas futuras gerações”, dizem os procuradores da República nas ações
iniciadas hoje.
Para
o MPF, o fato de vivermos atualmente uma crise de abastecimento de água de
graves proporções no sudeste do país, assim como o desaparecimento de trechos
inteiros do rio São Francisco, no nordeste, são alertas para o que pode ocorrer
na Amazônia, a maior bacia hidrográfica do país e do mundo, se for mantido o
atual padrão de total falta de planejamento e precaução.
“O
que ocorre no sudeste e no nordeste é um vislumbre do risco que correm os rios
da bacia Amazônica, em pior situação por nem sequer se observar a precaução
obrigatória da gestão participativa dos recursos. E a Amazônia, como demonstra
o conhecimento científico mais recente, é um ecossistema que funciona como
regulador hidrológico para o continente sul-americano e principalmente, para as
regiões sul, sudeste e centro-oeste do Brasil, diretamente beneficiadas pela
umidade transportada da floresta”, dizem as ações judiciais.
O
MPF cita o recente relatório do professor Antônio Donato Nobre, que posiciona o
ecossistema amazônico como o coração do ciclo hidrológico brasileiro,
fornecendo umidade sobretudo para as regiões sul, sudeste e centro-oeste, que
poderiam ser desérticas se não fosse a existência da floresta tropical ao
norte. Para os procuradores da República, beira a irresponsabilidade o
comportamento do governo brasileiro ao insistir em grandes empreendimentos nos
rios amazônicos sem nenhuma espécie de planejamento sobre o uso dos corpos
d'água.
No
caso da bacia do rio Madeira, o MPF lembra que estão previstos mais três usinas
hidrelétricas em um momento em que não se sabe ainda a influência das duas
barragens já existentes (Jirau e Santo Antônio) na trágica enchente de 2014,
que está sob investigação. “Se com apenas dois desses empreendimentos os
desdobramentos chegaram a patamares nunca antes observados e ainda não se tem
certeza da exata influência da construção das barragens nos acontecimentos, que
dirá do impacto sinérgico deles com mais outros três (um deles, inclusive, com
porte semelhante)? Qual o tamanho da irresponsabilidade governamental?”, diz a
ação ajuizada em Rondônia.
Além
da ação em Porto Velho, sobre a bacia do rio Madeira, foram ajuizadas ações em
Manaus, sobre as bacias do Negro e do Solimões, em Boa Vista, sobre a bacia do
rio Branco, em Cuiabá, sobre a bacia dos rios Tapajós e Teles Pires, em
Oiapoque e Laranjal do Jari, sobre os rios Jari e Oiapoque, em Redenção, sobre
a bacia Araguaia-Tocantins e em Santarém, sobre o rio Trombetas.
Veja
a íntegra de todas as ações
Fonte: Ministério Público Federal no Pará - Assessoria de Comunicação