Aos 87, Maria é a última xipaia que ainda domina a língua de seu povo (Foto: Lucas Reis) |
Lucas Reis*
A caravana mambembe interrompe a viagem pela Amazônia, em 1978, ao
encontrar uma família indígena perdida, que pede carona até Altamira (PA),
marco da rodovia Transamazônica.
“Depois que os brancos chegaram, minha aldeia se acabou”, relata o
cacique.
A história se repete no interior do Pará 36 anos depois da passagem da
trupe fictícia de Lorde Cigano (José Wilker) e Salomé (Betty Faria),
personagens de “Bye Bye Brasil” (1979), de Cacá Diegues.
Mãe e filha, índias que participaram das filmagens, serão retiradas de
onde vivem há 30 anos por causa da usina de Belo Monte. A casa de alvenaria e
porta de madeira será inundada pelo reservatório da hidrelétrica.
“A gente é acostumada a ter o rio por perto desde sempre. Como vai ser agora?
Para onde vão nos levar?”, lamenta Maria Antônia Xipaia Curuaia, 52, ao lado da
mãe, Maria Xipaia, 87.
Sentadas na varanda de casa, elas observam o que sobrou da vista do rio
Xingu, um vão no muro da frente.
“Era tão bonito aqui, não tinha nada, não tinha casa na frente, era só o
rio. A gente se banhava, lavava roupa, a água era tão limpa. Agora não dá
mais”, diz Maria, a mãe.
Maria tinha 50 anos, e Maria Antônia, 15, quando Cacá Diegues chegou à
cidade, de 20 mil habitantes à época, para iniciar o seu novo filme.
O roteiro conta a saga da caravana Rolidei, um grupo de artistas que
viajava pelo Brasil em busca de praças para apresentar espetáculos de mágica,
música e façanhas.
Frustrado pela popularização da TV, o personagem de Wilker, líder do
grupo, aceita a dica de um caminhoneiro: Altamira, na metade da Transamazônica,
era o novo “eldorado” brasileiro.
O filme retratava as mudanças em curso e a imbricação entre moderno e
arcaico pelo litoral e sertão nordestinos, Belém e Brasília.
No recém-lançado livro “Vida de Cinema (ed. Objetiva), Diegues diz que
uma experiência anterior com xavantes aculturados, em Mato Grosso, o motivou a
retratar índios em “Bye Bye Brasil”.
“Ele [Diegues] entrou em contato perguntando se havia índios bebendo e
jogando bilhar em bares. Isso não existia em Altamira, era uma cidade pequena e
isolada. Mas lembrei daquela família indígena aculturada que vivia havia anos
na cidade”, diz Salomão Santos, 69, que à época atuava na Funai (Fundação
Nacional do Índio).
TV ‘POLTERGEIST’
A presença indígena no Médio Xingu remete ao século 17 e a relatos de
xipaias, curuaias e jurunas na região.
Esses índios sofreram ao longo dos anos as mazelas da invasão branca, na
exploração da borracha e nas intervenções do regime militar, com a
Transamazônica e a distribuição de terras a colonos. Mais tarde, na controversa
usina de Belo Monte.
A família de Maria e Maria Antônia já vivia em Altamira no período da
gravação do filme de Diegues. Salomão, da Funai, conversou com todos e negociou
a gratificação, paga pela produção do longa.
“Naquela época não tínhamos TV, tudo era novidade. A cidade parou,
ninguém sabia o que era aquilo. Ficamos tímidos, não havia ensaio. Eles falavam
o que fazer e pronto”, conta Maria Antônia.
Ao todo, 13 índios aparecem no filme. Com exceção do cacique, ator, são
todos da mesma família –pais, tias, sobrinhos, irmãos. As crianças seguravam
aviões e TVs de brinquedo, os homens usavam óculos escuros e ouviam rádio –numa
mistura de cenas inspiradas nos xavantes de Mato Grosso e situações “reais”.
“Os índios que filmei a olhar o aparelho de TV em ‘poltergeist’ estavam
lá mesmo, não constavam do roteiro nem foram improvisados. Eles olhavam para o
aparelho de TV sem imagem e se satisfaziam com isso. Pedi para filmá-los e eles
me autorizaram a fazê-lo”, afirma Diegues.
Uma adolescente Maria Antônia aparece no filme usando short e chapéu,
com um jabuti na mão. A vontade dos índios de viajar de avião explorada no
longa era real, assim como o canto indígena em volta da fogueira, que encerra a
participação de todos.
“Lembro da Betty Faria e do José Wilker. Ele contava como era a vida na
cidade e perguntava como era aqui”, diz Maria Antônia.
DEPOIS DO FILME
Passada a gravação, a equipe pagou os índios. “Meu pai nos chamou e
repartiu o dinheiro. Disse que podia comprar qualquer coisa. Eu dormia em rede,
comprei cama e colchão. Meus pais compraram roupas e outras coisas de casa”,
diz Maria Antônia.
A participação dos índios pouco interfere na trama, e o drama da família
perdida expulsa pelos brancos é contado apenas de passagem.
Para Diegues, há nítida semelhança entre as obras da Transamazônica e a
de Belo Monte, com seus fluxos migratórios descontrolados e opressão aos mais
fracos.
“Esse desprezo pela vida e cultura dos outros é uma marca em nossa época
e já existia naquele tempo”, disse.
O sucesso dos xipaias e curuaias que se tornaram artistas de cinema foi
tão breve como a participação no filme. Por algumas semanas, os índios e
figurantes locais foram festejados, mas o tempo foi apagando as lembranças.
Hoje, Altamira e seus mais de 100 mil habitantes não guardam nada
daquela época, comércios ou cinema. Tudo que sobrou, além de uma cópia do filme
na biblioteca, foi a memória de quem viu.
Alguns índios da família retratada preferiram voltar à aldeia, a 50 km
da cidade. Mas a maioria apenas aprofundou o processo de urbanização,
espalhando-se pelo município. Os mais velhos morreram, e outros vivem até hoje
em Altamira.
A vida de Maria Antônia, que já trabalhava desde os dez anos com
serviços domésticos, não mudou após a passagem da caravana de Diegues, Wilker e
cia.
Três anos após as gravações, ela trabalhava como cozinheira num garimpo
quando conheceu o marido, um maranhense que desembarcou criança em Altamira com
a família em 1971.
Sem instrução, ela conta com orgulho que colocou os oito filhos na
escola. Netos, já são 16. Hoje vive do Bolsa Família e da renda do marido, que
vende churrasquinhos. A mãe se aposentou e tem casa na vizinhança, mas passa
boa parte do tempo com a filha, perto do Xingu.
TRADIÇÕES
Em meio à área urbana, elas tentam manter as tradições com visitas às
aldeias –na cidade há outras 653 famílias indígenas na área urbana e 98 na área
rural.
Aos 87, Maria é a última xipaia que ainda domina a língua de seu povo.
Sem interlocutores, costuma falar sozinha. A filha Maria Antônia interpreta só
algumas palavras. Outro filho dela, de 30 anos, também se esforça. Ao morrer,
Maria provavelmente levará o idioma consigo.
A esperança são netos pequenos, que têm se empolgado e aprendido um
pouco do xipaia, e uma professora da Universidade Federal do Pará, Carmem Lúcia
Rodrigues, que promove um trabalho de resgate da língua.
Do futuro, a única certeza por ora é o fim da vista para o Xingu. “Tinha
minhas plantinhas no quintal, mas sei que vou sair e nem planto mais”, diz
Maria Antônia. “A gente vive aqui há anos, daí chegam de fora e não perguntam
se a gente quer sair. Tem que sair e pronto? Isso é justo?”.
O reassentamento de índios não aldeados integra as exigências que a
Norte Energia, a concessionária responsável pela obra, deve cumprir –fora da
área urbana, outros grupos indígenas sofrerão impacto direto da obra.
Segundo a empresa, as pessoas serão realocadas em cinco novos bairros.
Ao todo, mais de 5.000 famílias da cidade serão transferidas, pois suas casas
serão afetadas.
Para Diegues, “Bye Bye Brasil” foi uma premonição do que estava
acontecendo e ainda iria ocorrer no país.
“Infelizmente, o pior dessa premonição continua nas invasões das terras
indígenas, na sistemática eliminação deles e de seus valores morais e
culturais”, afirma o diretor. “Cada vez que penso nessa tragédia, me angustio
–sei que ela se agrava e não sei como evitá-la.”
*Fonte: Folha de São Paulo