segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Os munduruku e a consulta póstuma


Por Felício Pontes e Rodrigo Oliveira*
“Essa consulta já não está sendo prévia, vocês querem pressionar para que ela não  seja livre?”. A frase dita por uma liderança munduruku resume a consulta prévia da Usina Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós,  retomada nos dias 2 e 3 de setembro de 2014 em reunião na aldeia Praia do Mangue. Na ocasião, os representantes do governo enfatizaram que a consulta seria algo inédito no Brasil e que marcaria uma nova relação entre Estado e povos indígenas. Comprometeram-se a respeitar a legislação, que afirma que os povos indígenas deverão ser consultados de forma prévia, livre e informada sempre que uma medida específica puder afetar seus direitos.

Mas os compromissos foram escritos na areia e menos de 10 dias após a reunião é dado um duro golpe na confiança dos munduruku: o Ministério de Minas e Energia publica a Portaria 485 marcando o leilão da Usina para 15 de dezembro de 2014. Embora revogado, o ato ilustrou toda arbitrariedade que atravessa o processo e elimina qualquer possibilidade de se fazer uma consulta de fato prévia. Três fatores demonstram que a decisão pela construção da barragem foi tomada, independentemente da consulta aos munduruku. Vejamos.

Resolução CNPE nº 03/2011 . A primeira autorização ao empreendimento foi dada em 2011 quando o Conselho Nacional de Política emitiu a Resolução CNPE nº 03/2011, que no artigo 1º elege a UHE São Luiz do Tapajós como “projeto de geração de energia elétrica estratégico, de interesse público, estruturante e com prioridade de licitação e implantação”. O artigo 2º determina ao Poder Executivo a adoção de medidas e conclusão dos estudos para a construção da barragem.

Pedido de Licença Prévia Licença Prévia , (LP) é o ato que aprova a localização e a concepção de um empreendimento, além de atestar sua viabilidade ambiental. A LP de São Luiz do Tapajós foi solicitada no dia 14 de julho de 2014. Mesmo que o órgão ambiental responsável (Ibama) ainda não tenha concedido a licença, a simples solicitação mostra que a Eletrobrás, empresa estatal responsável pelo projeto, já decidiu a localização e a concepção da barragem. E o mais grave: afirma que ela é ambientalmente viável sem que os munduruku fossem consultados e manifestassem suas percepções acerca dos impactos do projeto. A solicitação desrespeita decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que obriga a consulta a todos os povos indígenas antes de qualquer licença ambiental.

Portaria 485/2014. A Portaria do Ministério de Minas e Energia que agendou o leilão para 15 de dezembro de 2014, mesmo revogada, reforça que o governo decidiu pela construção da barragem. Levar a UHE São Luiz do Tapajós a leilão significa que o próximo passo é escolher quem irá construí-la, já tomando como um fato. Inclusive, Furnas (empresa estatal do setor elétrico ligada à Eletrobrás) firmou um convênio com a empresa chinesa China Three Gorges para disputar o futuro certame. A revogação da portaria foi “motivada pela necessidade de adequações aos estudos associados ao tema do componente indígena”, e não pela razão de que o projeto precisa ser consultado com os munduruku antes de qualquer decisão.

Com a decisão tomada, a consulta que deveria ser prévia passa a ser póstuma, contrariando a Convenção 169 da OIT , que é clara ao dizer que ela se dá antes de “empreender ou autorizar” uma medida específica. A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) reforça que ela deve ocorrer “desde as primeiras etapas de elaboração ou planejamento da medida proposta”. A conduta revela a concepção do governo de que a consulta é um espaço limitado à discussão de compensações e mitigações, e não um procedimento para levar a sério a autodeterminação dos povos indígenas e possibilitar que eles decidam seus próprios destinos.

A consulta póstuma da UHE São Luiz do Tapajós deixa a sensação de que os povos indígenas continuam invisíveis para o governo federal. O maior desafio será estabelecer um clima de confiança com os munduruku, receosos com as seguidas arbitrariedades do governo federal. Se o governo estiver realmente disposto a mudar suas práticas, é preciso dar alguns passos para trás, reconhecer que errou e admitir a possibilidade de não construir a barragem, a depender do que decidam os munduruku. Só então será possível falar em consulta prévia.
Descrição: https://ssl.gstatic.com/ui/v1/icons/mail/images/cleardot.gif

* Felício Pontes é Procurador da Republica no Estado do Pará. Rodrigo Oliveira é mestrando em direitos humanos, UFPA, e pesquisador da De Justicia. Artigo publicado  originalmente AQUI.
Comentários
0 Comentários

0 comentários: