“Essa consulta já não está
sendo prévia, vocês querem pressionar para que ela não seja livre?”. A frase dita
por uma liderança munduruku resume a consulta prévia da Usina
Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, retomada nos dias 2
e 3 de setembro de 2014 em reunião na aldeia Praia do Mangue. Na ocasião, os
representantes do governo enfatizaram que a consulta seria algo inédito no
Brasil e que marcaria uma nova relação entre Estado e povos indígenas.
Comprometeram-se a respeitar a legislação, que afirma que os povos indígenas
deverão ser consultados de forma prévia, livre e informada sempre que uma
medida específica puder afetar seus direitos.
Mas os compromissos foram escritos na areia e menos de 10 dias
após a reunião é dado um duro golpe na confiança dos munduruku: o Ministério de
Minas e Energia publica a Portaria
485 marcando o leilão da Usina para 15 de dezembro de 2014.
Embora revogado, o ato ilustrou toda arbitrariedade que atravessa o processo e
elimina qualquer possibilidade de se fazer uma consulta de fato prévia. Três
fatores demonstram que a decisão pela construção da barragem foi tomada,
independentemente da consulta aos munduruku. Vejamos.
Resolução CNPE nº
03/2011 . A primeira autorização ao empreendimento foi dada em 2011 quando
o Conselho Nacional de Política emitiu a Resolução CNPE
nº 03/2011, que no artigo 1º elege a UHE São Luiz do Tapajós
como “projeto de geração de energia elétrica estratégico, de interesse público,
estruturante e com prioridade de licitação e implantação”. O artigo 2º
determina ao Poder Executivo a adoção de medidas e conclusão dos estudos para a
construção da barragem.
Pedido de Licença
Prévia A Licença Prévia ,
(LP) é o ato que aprova a localização e a concepção de um empreendimento, além
de atestar sua viabilidade ambiental. A LP de São Luiz do Tapajós foi
solicitada no dia 14 de julho de 2014. Mesmo que o órgão ambiental responsável
(Ibama) ainda não tenha concedido a licença, a simples solicitação mostra que a
Eletrobrás, empresa estatal responsável pelo projeto, já decidiu a localização
e a concepção da barragem. E o mais grave: afirma que ela é ambientalmente
viável sem que os munduruku fossem consultados e manifestassem suas percepções
acerca dos impactos do projeto. A solicitação desrespeita decisão do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) que obriga a consulta a todos os povos
indígenas antes de qualquer licença ambiental.
Portaria 485/2014. A Portaria do Ministério
de Minas e Energia que agendou o leilão para 15 de dezembro de 2014, mesmo
revogada, reforça que o governo decidiu pela construção da barragem. Levar a
UHE São Luiz do Tapajós a leilão significa que o próximo passo é escolher quem
irá construí-la, já tomando como um fato. Inclusive, Furnas (empresa
estatal do setor elétrico ligada à Eletrobrás) firmou um convênio com
a empresa chinesa China Three Gorges para disputar o futuro certame. A
revogação da portaria foi “motivada pela
necessidade de adequações aos estudos associados ao tema do componente indígena”,
e não pela razão de que o projeto precisa ser consultado com os munduruku antes
de qualquer decisão.
Com a decisão tomada, a
consulta que deveria ser prévia passa a ser póstuma, contrariando a Convenção 169 da
OIT , que é clara ao dizer que ela se dá antes de “empreender
ou autorizar” uma medida específica. A jurisprudência da
Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) reforça que ela deve
ocorrer “desde as primeiras etapas de elaboração ou planejamento da medida
proposta”. A conduta revela a concepção do governo de que a consulta é um
espaço limitado à discussão de compensações e mitigações, e não um procedimento
para levar a sério a autodeterminação dos povos indígenas e possibilitar que
eles decidam seus próprios destinos.
A consulta póstuma da UHE São Luiz do Tapajós deixa a sensação de
que os povos indígenas continuam invisíveis para o governo federal. O maior
desafio será estabelecer um clima de confiança com os munduruku, receosos com
as seguidas arbitrariedades do governo federal. Se o governo estiver realmente
disposto a mudar suas práticas, é preciso dar alguns passos para trás,
reconhecer que errou e admitir a possibilidade de não construir a barragem, a
depender do que decidam os munduruku. Só então será possível falar em consulta
prévia.