Terra Indígena Alto Turiaçu. Desmatamento acumulado no entorno da TI até 2014 |
Por: Tatiane Klein e Victor Pires*
Lutando
para proteger a Terra Indígena Alto Turiaçu (MA) do assédio de madeireiros e
fazendeiros, o povo indígena Ka’apor teve um líder assassinado, em 2015.
Agora, Iraúna Ka’apor, de apenas 14 anos, desapareceu. Ela foi
vista pela última vez em um acampamento de madeireiros
Há
meses, o povo indígena Ka’apor, que vive em uma das últimas fronteiras
florestais do estado do Maranhão, enfrenta um novo drama. Depois de ver o
líder Eusébio Ka’apor assassinado, em abril de 2015, por lutar contra a
exploração ilegal de madeira na Terra Indígena (TI) Alto Turiaçu, as
comunidades agora tentam descobrir o paradeiro de uma jovem de 14 anos,
desaparecida desde fevereiro de 2016 e avistada pela última vez em um
acampamento madeireiro no Pará.
O
sequestro da jovem Iraúna, que vivia na aldeia Axiguirendá, levou o Conselho
Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente do Maranhão a espalhar
cartazes por todo o município de Centro do Guilherme, no noroeste do Maranhão,
onde estão localizadas várias madeireiras e serrarias, abastecidas por madeira
de alto valor comercial extraída ilegalmente da TI. Todos os cartazes sumiram,
assim como Iraúna.
Essa
e outras graves violências compõem uma denúncia apresentada no dia 24 de junho
ao Ibama, ao Ministério Público Federal no Maranhão e à Polícia Federal pela
ONG Greenpeace. Segundo o documento, a região vive clima de guerra, fomentado
pelo aumento das ameaças de madeireiros e fazendeiros aos Ka’apor. Graças a
ações autônomas de proteção à terra, os índios já conseguiram fechar 24 ramais
de exploração madeireira abertos ilegalmente e criar sete “áreas indígenas de
proteção” no interior da TI.
O
desaparecimento da jovem já havia sido denunciado pelos Ka’apor em uma nota
divulgada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em abril deste ano. Mas
de abril até agora, segundo um dos indígenas que compõe o Conselho de Gestão
Ka’apor, nenhuma medida foi tomada (confira a entrevista completa abaixo).
A
situação também foi denunciada pela ONG Global Witness, que acaba de lançar um
relatório, mostrando que, em 2015, o Brasil foi o país com maior número de
ambientalistas assassinados. O documento destaca a morte de Raimundo dos Santos
Rodrigues, um dos defensores da Reserva Biológica do Gurupi, próxima à TI Alto
Turiaçu.
Crimes sem castigo
Procurada
pela reportagem do ISA, a assessoria de imprensa da Polícia Federal no Maranhão
afirma que as informações não haviam chegado formalmente à delegacia
responsável. “Chegando, será instaurado inquérito policial e tomadas as medidas
investigatórias cabíveis para apurar eventuais crimes praticados contra os
indígenas”, alega. Já o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) informa
que tem realizado ações de combate ao desmatamento ilegal no estado do
Maranhão, mas não pode comentar sobre eventuais investigações em curso.
Em
entrevista ao ISA, o procurador da República no estado do Maranhão Alexandre
Silva Soares explica que, assim que recebida, a denúncia do Greenpeace foi
encaminhada à Superintendência de Polícia Federal, mas até o fechamento desta reportagem
o ofício não havia sido respondido. Soares também informa que já tinha
conhecimento do conteúdo das denúncias e que outras já haviam sido encaminhadas
pelo MPF, ensejando operações de fiscalização feitas pelo Ibama e PF.
Ainda
segundo o procurador, correm em segredo de Justiça duas ações civis públicas
questionando a ausência de proteção da área pelo Poder Público. Em 2014, a
Justiça Federal condenou o Ibama, Funai e União a apresentar um plano de
fiscalização das Tis Alto Turiaçu, Awa e Caru no prazo de 120 dias – o que não
foi efetivado. “Sem a ocupação dessas áreas por agentes do Estado brasileiro,
essas áreas ficam desprotegidas”, avalia Soares.
Trabalhando
há oito anos com os Ka’apor, o antropólogo José Mendes avalia que os órgãos
governamentais, especialmente os do Maranhão, têm sido omissos com relação às
ameaças aos indígenas. O Programa de Defensores de Direitos Humanos, da
Secretaria de Direitos da Presidência da República, também já foi acionado
inúmeras vezes, mas, segundo Mendes, os Ka’apor ainda não foram incluídos nele.
Ações próprias
A
região já foi alvo de diversas operações do Ibama e da PF, como Hiléia Pátria,
Nuvem Preta e Lignum, fechando serrarias e madeireiras. Mas, na opinião dos
pesquisadores e dos Ka’apor, elas surtem pouco efeito para coibir esses crimes.
Por isso, a partir de outubro de 2013, os indígenas fortaleceram suas próprias
ações de proteção e fiscalização do território. Hoje, os antigos ramais de
exploração ilegal de madeira se tornaram kaar husak ha, como são chamadas as
“áreas protegidas” na língua Ka’apor, onde vivem entre seis e oito famílias
indígenas. Por conta da intensificação das ameaças, revela o Greenpeace, essas
famílias estão proibidas de circular pelas estradas que cortam a TI e que levam
às vilas.
Segundo
Mendes, Iraúna foi provavelmente abordada em uma dessas estradas, no caminho
entre a Axiguirendá e o município de Centro do Guilherme. “Além de ser
adolescente, [Iraúna] não fala português. As pessoas suspeitam que ela tenha
sido abordada em um povoado chamado Nadir, a dois ou três quilômetros do limite
da TI, onde existe um histórico de garimpo, de usuários de drogas e de
plantação de maconha. E a maioria dos envolvidos nesses ilícitos também está
envolvido na [extração ilegal] madeira”, denuncia Mendes.
“Esse
trabalho de coibir a invasão realizado pelos Ka’apor é um dos motivos que vem
levando a ameaças e à escalada de violência”, avalia Rômulo Batista, que é
pesquisador do Greenpeace e esteve na área recentemente. Mendes concorda. Após
o fechamento de um dos principais ramais de extração de madeira, em outubro de
2014, passou a circular pelas vilas da região uma lista com nomes de oito
lideranças indígenas ameaçadas de morte. No início de 2016, foram os Ka’apor
que elaboraram uma lista, entregue ao MPF, denunciando os nomes de madeireiros,
fazendeiros, pistoleiros e traficantes ou pessoas aliciadas por eles,
envolvidos em invasões de aldeias e agressões aos indígenas.
Décadas de ameaças
Na
região do Gurupi, a TI Alto Turiaçu compõe um conjunto de Terras Indígenas e
Unidades de Conservação contíguas que faz a transição da floresta amazônica
maranhense para áreas de Cerrado e Caatinga, onde há décadas o povo Ka’apor
sofre com atos de violência perpetrados por madeireiros e fazendeiros. E a
extração ilegal de madeira não fica restrita a essa TI, ocorrendo em toda a
região, onde estão as Tis Alto Rio Guamá, Awa e Caru, além da Reserva Biológica
do Gurupi. Todas essas Terras Indígenas já chegaram ao último estágio do
processo de demarcação, a homologação.
As
ações dos indígenas para retirar os invasores de suas terras levaram a outros
graves ataques em anos recentes. Em 16 de maio de 2010, Hubinet Ka’apor, 38
anos, foi brutalmente assassinado por madeireiros; em março do ano seguinte,
Tazirã Ka’apor, de 20 anos, também foi morto. Reportagens compiladas pelo
Sistema de Áreas Protegidas do ISA mostram que, pelo menos desde a década de
1970, os índios no Maranhão enfrentam ataques. Em 1979, por exemplo, cinco
indígenas Awá-Guaja foram mortos por envenenamento. Apesar de recorrentes
operações de fiscalização, amplamente noticiadas pela imprensa, invasões e
ataques sempre voltam a ocorrer (confira na linha do tempo abaixo).
Mais
recentemente, no final de 2015, um incêndio de grandes proporções atingiu as
Tis Alto Turiaçu, Awa e Caru. Centenas de Guajá e cerca de 60 indígenas
isolados ficaram em situação de risco. As suspeitas são de que o fogo teve
origem criminosa, represália de madeireiros após uma operação de fiscalização
contra a venda ilegal de madeira.
Os
especialistas são unânimes em apontar que as operações de fiscalização são
insuficientes, ainda mais numa região onde a perseguição contra quem defende o
meio ambiente não é a única mazela e o poder público praticamente inexiste: “A
falta de uma política efetiva de proteção territorial das TI e Ucs faz com que,
após as operações, o modus operandi dos madeireiros se repita”, critica
Batista. Para o procurador Alexandre
Soares, as ações de repressão são superadas pela lógica econômica da região: “A
questão não é apenas um caso de polícia, é também social e econômico. O
problema é que a economia da região gira em torno da economia ilegal. Temos que
atacar não somente esses agentes que atuam na extração ilegal de madeira, mas
também de propiciar meios dessas pessoas se inserirem no mercado de trabalho de
atividades lícitas”, afirma.
“São
os pequenos se conflitando. São os indígenas e aquelas pessoas que vivem da
agricultura familiar. Quem não vive da agricultura familiar, é aliciado pela
exploração de madeira ilegal”, aponta o antropólogo José Mendes, pontuando que
logo após as fiscalizações e apreensões feitas pelo Ibama, as madeireiras e
serrarias quase sempre voltam a funcionar. “Não existe vontade política. Só
existe um interesse muito grande dos indígenas em proteger esse território e
eles têm nos dado grandes lições de como viver mantendo a floresta em pé. Os
Ka’apor estão fazendo um grande bem para a sociedade”, conclui.
“A gente protege a mata e ela dá comida para gente”
O
ISA entrevistou um dos membros do Conselho de Gestão Ka’apor, que preferiu não
se identificar. Ele fala da realidade vivida pelas mais de 1,8 mil
pessoas que vivem hoje na TI Alto Turiaçu, em dez aldeias do povo Ka’apor e uma
do povo Guajá
Instituto Socioambiental – Como está a situação na TI Alto Turiaçu agora?
I.
A gente continua sendo ameaçado. Principalmente, nas áreas de proteção Ka’apor.
Não podemos ficar andando pelas cidades. Lideranças das áreas de proteção estão
sendo impedidas de sair. Me perseguiram de moto esses dias. Falam meu nome e de
outras pessoas nas cidades. Em duas áreas de proteção ficam oferecendo bebidas
para indígenas. Há dois meses, levaram Irauna Ka’apor, de 14 anos. A Polícia
Civil e Militar do Maranhão não fizeram nada.
ISA – No começo da semana passada, o Greenpeace protocolou uma denúncia
na PF, MPF e Ibama sobre a situação. Alguma medida já foi tomada?
I.
– Enviamos documento para o MPF com nome de agressores, dos donos de bares,
madeireiros nas entradas das aldeias. O procurador falou que passou para a
Polícia Federal, Ibama e Funai, mas não fizeram nada. Greenpeace é nosso
apoiador. Estiveram com a gente nas aldeias e viram a situação. Mandaram
documento para MPF e os órgãos não fizeram nada. Este final de semana, na
entrada da aldeia Ximborenda, município de Maranhãozinho, num povoado chamado
Buraco do Tatu – perto de onde mataram Eusebio Ka’apor – foram vistas pessoas
armadas bebendo nos bares e, ontem, roubaram a moto de um indígena. Fizemos
denúncia na delegacia de Santa Luzia do Paruá.
ISA – Desde quando essa pressão acontece?
I.
– A pressão aumentou depois que nos fizemos nossa assembleia em 2013 e
decidimos proteger juntos nosso território. Fizemos um acordo de convivência
interno para a vivência dentro do nosso território, como não deixar branco
entrar sem permissão do Conselho de Gestão Ka’apor. Nosso povo de todas as
aldeias se uniu, fortalecemos nossa vigilância do território em grupos em
várias partes do território. Entramos e fechamos os principais ramais de
madeireiros. São sete áreas de proteção. Temos uma guarda agroflorestal, desde
2014, que coordena a vigilância e proteção territorial e dá apoio a nossas
áreas de proteção.
ISA – Alguém presenciou o sequestro da Irauna Ka’apor? Como está a
família dela?
I.
Ninguém da aldeia viu quando ela foi levada. A família está muito triste na
aldeia. O Conselho de Gestão Ka’apor está acompanhando isso junto com MPF.
Estamos preocupados porque são quase três meses e ninguém deu notícias. O
governo do Maranhão não faz nada aqui na região. Nunca fez pra proteger nosso
território e as pessoas. Tem muito roubo nas cidades. Nosso Conselho de Gestão,
nossos guardas florestais e quem apoia a gente aqui no trabalho estão sendo
muito perseguidos. Eles querem matar a gente. O assassino de Eusébio tá solto
aqui em Santa Luzia do Paruá. A Polícia não faz nada.
ISA – E essas ameaças estão sendo só contra os Ka’apor ou também contra
os outros povos que vivem na região?
I.
– Aqui só moram os Ka’apor e um grupo Guajá bem pequeno, mas eles ficam mais
protegidos, porque os Ka’apor moram perto dos limites. Nossa terra tem 530.524
hectares, pega seis municípios de nossa região, na divisa com o Pará. Tem
perseguição também contra os quilombolas. Como a gente não deixou madeireiros
entrar aqui, eles estão tirando madeira do território dos quilombolas. E tiram
também da Reserva Biológica do Gurupi.
ISA – Vocês conseguiram afastar todos os invasores na Terra Indígena Alto
Turiaçu?
I.
– As áreas são afastadas das cidades. Fica longe, de 35 km pra frente.
Não são perto da cidade. Estradas [são] ruins. Agora, não tem
madeireiro dentro porque estamos dia e noite espalhados nos limites, fazendo
vigilância. Por isso querem matar os guardas e as lideranças. Só
[tem] caçador e capoeiras. Hoje, nosso povo tem mais saúde. Tem
mais comida. Onde tinha sido derrubado, está se recuperando. As
caças não escutam barulho de motosserra. Temos mais caça. A gente
protege a mata e ela dá comida pra gente.
*Fonte: ISA