Na última semana (10 a 17 de
julho), o sítio e o jornal O Estado de São Paulo trouxe uma série especial de reportagens,
que expõe a violência enraizada em várias partes do interior do país, nos estados
de Mato Grosso, Amazonas, Goiás, Mato Grosso do Sul, Pará, Rondônia e
Tocantins.
Entre setembro de 2015 e março
deste ano, o Estado percorreu 15 mil quilômetros de estradas federais
e trilhou um mapa ignorado pelo governo federal, num universo composto por
tortura, incineração de corpos, chuvas de veneno, suicídios de índios,
violência contra mulheres, ônibus escolares na mira de fuzis, esquema de venda
de licenças, pistolagem paga por planos de manejo e tabelas de execuções.
O preço do hectare e da
madeira acirra a concorrência entre guaxebas, tradicionais matadores de
aluguel, e catingas, milicianos que surgem no mercado do terror. A repercussão
da chacina de Eldorado do Carajás, em que 19 camponeses foram mortos há 20 anos
no Pará, não puxou para baixo a curva da barbárie. O cruzamento de acervos do
poder público e de entidades da sociedade civil revela que pelo menos 1.309
pessoas foram mortas em conflitos rurais no Brasil desde 1996. É como se um
massacre da mesma proporção ocorresse a cada 100 dias. O número de assassinatos
equivale ao volume de árvores cortadas na Amazônia a cada 30 segundos,
ininterruptamente, nas duas últimas décadas. A lista dos mortos inclui a
geração nascida em agrovilas fracassadas, canteiros de obras inacabadas e
aldeias sufocadas no tempo do Brasil Grande, projeto de desenvolvimento da
ditadura militar.
Trata-se de um levantamento
inédito de assassinatos em conflitos rurais por terras e madeira. Eles ocorrem
geralmente em áreas afastadas, onde não há proteção institucional ou apoio da
rede de advogados ligados à questão do campo. As vítimas são, em sua maioria,
pequenos agricultores e índios, mas também há fazendeiros, seguranças e
pistoleiros. Parte considerável dos assassinatos é cometida por grileiros e
grandes proprietários de terra. Os dados apontam que 97% das mortes são de
camponeses e indígenas.
Os principais caminhos
escolhidos pela reportagem foram traçados ainda no regime militar e se
transformaram em canteiros de obras do governo federal. Rotas da investigação,
as BRs 060, 070, 364, 163, 230, 242, 319, 158 e 155 foram desenhadas sobre
antigos caminhos de bandeiras e monções que partiam do litoral para a conquista
do interior no século 17.
O material divulgado pelo
Estado, além de possuir detalhado levantamento de campo, trás fotografias de
Dida Sampaio e Hélvio Romero, além de gráficos, vídeos e mapas interativos que
completam e ilustram o texto de André Borges e Leonencio Nossa.
Confira:
Na defesa da floresta, os
extrativistas Éder Chaves Dias e João Coelho tentam impedir a passagem de
invasores pelo Vale do Jamari, em Rondônia. Estão marcados para morrer. Como
eles, há centenas de outros na lista do crime organizado que avança sobre as
terras da União rumo à Amazônia, maior reserva tropical do planeta. Ao mapear a
grilagem em sete Estados do Norte e Centro-Oeste do País, o Estado identificou
482 focos ativos de tensão e violência conflagrados sob incentivo dos últimos
governos e do Judiciário em 143 municípios, uma realidade descolada das
mudanças de poder na política nacional.
Uma bandeira do Movimento
dos Sem-Terra (MST) foi estendida na entrada da Fazenda União Recanto Cinco
Estrelas, uma terra da União em Novo Mundo, Mato Grosso. É um disfarce. Os
homens armados que vigiam a área de 9,6 mil hectares, uma área três vezes maior
que a do centro da cidade de São Paulo, são milicianos, os chamados catingas,
pagos por fazendeiros, advogados, topógrafos e servidores das prefeituras da
região para ocupar a fazenda, que estava para virar um assentamento do Incra.
O fazendeiro Carlos Raposo,
de Nova Guarita, norte de Mato Grosso, contratou uma empresa aérea para lançar
agrotóxico nas terras de famílias do Assentamento Raimundo Vieira III, vizinho
de sua propriedade. Ele ainda é acusado de intimidações e quebra de cercas. Os
assentados cortavam palha de fazer vassoura quando viram um avião amarelo com
letras azuis se aproximar no céu, em voo baixo. Pensaram que era uma aeronave
da Polícia Federal, que vinha resolver os “problemas”. O avião passou por eles,
adiante aumentou a altitude e deu novo rasante. Daí veio um cheiro forte. “É
veneno”, gritaram Rudinei Ribeiro, de 36 anos, e a mulher dele, Creuza da Silva
Dutra, de 49. O aparelho despejou agrotóxico nos agricultores, nos telhados das
casas e nas plantações.
Em Eldorado do Carajás, no
Pará, as covas das 19 vítimas do massacre ocorrido duas décadas atrás viraram
miragem. Firmas de segurança atuam como milícias, contratadas para proteger
grileiros. Do massacre até hoje, 197 pessoas foram assassinadas em conflitos no
sudeste e sul do Pará. Um dos focos de tensão fica a 40 quilômetros da Curva do
S. Famílias de sem-terra disputam a posse da Fazenda Cedro, de 8,3 mil
hectares, sendo 80% da União. Histórias de terror marcam o Acampamento Helenira
Resende, nome de uma guerrilheira morta pelo Exército em 1972. Ali vivem 450
famílias. A maioria dos adultos trabalha como peão e consertador de cercas nas
fazendas próximas.
A repercussão do assassinato
da missionária americana Dorothy Mae Stang, em Anapu (PA), em 2005, tornou-se
uma barreira ao avanço de madeireiros no rumo do oeste da Amazônia. O crime
organizado continua, no entanto, matando defensores da floresta. Para camuflar
os homicídios, pistoleiros executam vítimas em ruas e bares de pequenas cidades
da região. Colega de Dorothy, a também missionária americana Jane Dwyer aponta
sete mortes por conflito de terra e madeira ocorridas em Anapu no ano passado.
Ela rejeita a versão da Polícia Civil, que investiga apenas uma morte no
período causada por disputa no campo. "Eles inventam. Matar na cidade é
estratégico. Dizem que é por causa de mulher, bebida, vingança. Não é. É por
terra.”
No dia 5 de dezembro de
2014, uma sexta-feira, um registro inusual apareceu na tela do sistema de
Documento de Origem Florestal (DOF) do Ibama, programa utilizado pelos Estados
para oficializar processos de extração de madeira em todo o País. Com apenas um
clique, a Secretaria Ambiental de Rondônia havia liberado uma “autorização de
exploração florestal” (Autex) para a derrubada de 17.613 metros cúbicos
madeira, em benefício de Paulo Firmino da Silva. Era um volume abissal. Em
condições normais, essas autorizações costumam envolver quantidades bem
menores, algo em torno de 3 mil ou 4 mil metros cúbicos. A retirada de toda
aquela madeira, que seria feita em uma única área de “plano de manejo florestal
sustentável”, equivalia a enfileirar 880 caminhões abarrotados de toras. Mas o
problema não era só a dimensão do pedido, e sim como e por quem foi liberado.
Da Serra do Roncador (MT) à
Ilha do Bananal (TO), o gado avança sobre áreas sensíveis de Cerrado e
floresta. Sopés dos grandes granitos do norte do Mato Grosso e terras da maior
ilha fluvial do mundo viraram pasto. Embora seja proibido criar gado em área
indígena, na reserva dos carajás, no Tocantins, fazendeiros já mantêm mais de
93 mil cabeças de gado. Pressionados pela ocupação descontrolada do solo,
índios passaram a fazer parte do negócio, arrendando terras para invasores que
pagam pequenas quantias para ter acesso à ilhabanhada pelos Rios Araguaia e
Javaés. Vice-cacique da Aldeia Santa Isabel do Morro, onde vivem 900 índios,
Txiarawa Karajá conta que a tribo recebe de R$ 30 mil a R$ 40 mil por ano para
não impor resistência. O dinheiro, rateado entre 15 fazendeiros, é repassado
aos índios em duas parcelas. “A gente sabe que não é legal, mas aceita essa
situação porque precisa do recurso. Eu acho que é pouco, não dá para resolver
nada. Mas, como a Funai não tem dinheiro, precisamos fazer isso.”
Extermínio guarani-caiová: Vivendo à beira das BRs, etnia é vítima de ameaças e emboscadas frequente
Os tratores se movimentam
entre a plantação e um pedaço de mata na Fazenda Brasília do Sul, em Juti, a
320 km de Campo Grande (MS). A poucos metros dali, uma família guarani-caiová,
acampada num canto da propriedade, tenta se concentrar nas orações diante de
uma cova improvisada. Duas semanas antes, Virgílio Veron, de 47 anos, cometeu
suicídio ao saber que a Justiça havia determinado nova retirada dos índios. A
possível chegada de tropas para despejar as famílias deixou a comunidade em
estado de tensão. Naqueles dias, Virgílio não escondia o temor. “Ele não
conseguia dormir ou comer. Deixou seis filhos, não suportou”, diz Valdelice
Veron, sua prima.