Por Rodrigo Oliveira*
Resistir à construção de
hidrelétricas nos rios amazônicos é buscar outra forma de se viver e de se
relacionar com a natureza. Há, por isso, algo de muito poético em se lutar pela
liberdade de um rio. O poeta João Cabral de Melo Neto ensina que quando um rio
corta-se, corta-se de vez o discurso-rio de água que ele fazia. E um rio
interrompido equivale a uma palavra em situação dicionária, muda, nada
comunica. Os rios, assim como as palavras, precisam estar livres para comporem
uma poesia.
Por vezes, a nossa
resistência assume uma feição tão profissional que nos tornamos insensíveis a
essa dimensão poética e deixamos de perceber que nada é tão potente quanto o
amor e a poesia para nos mover em nossas lutas. A propósito das resistências em
defesa dos rios amazônicos, dedico as próximas linhas a refletir sobre o valor
das emoções nas lutas que travamos diariamente.
Fotografia: Casa na comunidade tradicional Aritapera, rio Amazonas. Foto: Rodrigo Oliveira. |
Em uma de suas palestras
sobre a Hidrelétrica
de Belo Monte, Lúcio Flávio Pinto, renomado jornalista que se consagrou na
cobertura da Amazônia, provocou seus interlocutores: “o amor ao rio não é capaz
parar uma hidrelétrica”. A fala foi dirigida a uma classe média universitária e
tentou chamar atenção para a necessidade de respaldarmos nossas críticas no
conhecimento científico. Suponho que também seja uma crítica ao “tom passional
do debate” e às palavras de ordem. Mas qual é o sentido dessa oposição entre
resistência e amor? Quais são os perigos do discurso cientificista?
O uso da ciência é uma
estratégia recorrente no campo socioambiental. Diferentes grupos mobilizam o
discurso científico, seja para tecer a crítica ou para forjar a legitimação de
empreendimentos. A ciência, sem dúvida, desempenha um papel importante na
produção de informação sobre riscos e impactos, e na formação do convencimento
da população.
Deve-se evitar, no entanto, cair na armadilha de crer que a ciência seja o aspecto central da disputa. Henri Lefebvre nos alerta que o perigo está em acreditar que a “ciência está na vida”, ao passo que as decisões centrais são política e economicamente condicionadas.
Deve-se evitar, no entanto, cair na armadilha de crer que a ciência seja o aspecto central da disputa. Henri Lefebvre nos alerta que o perigo está em acreditar que a “ciência está na vida”, ao passo que as decisões centrais são política e economicamente condicionadas.
As milhares de páginas de
livros e artigos dedicadas a criticar a Hidrelétrica de Belo Monte não
pareceram suficientes para arrefecer o ímpeto estatal em barrar o rio Xingu.
Com a barragem em operação, restou a saudade do rio amputado aos povos da Volta
Grande do Xingu, a indignação às famílias que foram expulsas de suas casas, e a
angústia da invisibilidade aos ribeirinhos. Hoje, travam uma luta árdua na
tentativa de reduzir seu sofrimento e minimizar os danos. Não se pode negar a
importância da emoção na construção da resistência.
Por outro lado, a provocação
do jornalista minimiza a importância das múltiplas formas de se relacionar com
os rios e com a natureza, que precisam e devem se expressar na arena pública.
Exigir que a crítica seja construída em termos “cientificamente admissíveis” é
reforçar as expertises de burocratas, cientistas e acadêmicos em detrimento do
conhecimento tradicional dos grupos etnicamente diferenciados. É a recusa
epistemológica da experiência enquanto forma de descrever, analisar e se
apropriar da natureza.
Não nego que a universidade
tenha, sim, o dever de produzir ciência e qualificar o debate crítico, mas é
chegada a hora de abrir o horizonte das possibilidades e de ter a humildade de
reconhecer que talvez o que falte à universidade seja justamente se aproximar
dos grupos a que ela historicamente fechou as portas. As ações afirmativas
representam avanço, mas não basta abrir as portas aos sujeitos, é preciso
respeitar e valorizar os conhecimentos que eles produzem e carregam consigo.
Este intercâmbio transcultural com os povos tradicionais não é apenas
desejável, mas urgente, como aponta o filósofo argentino Enrique
Dussel, pois é a única maneira de salvar a humanidade do suicídio coletivo
que representa a aniquilação das condições ambientais.
Há anos penso em responder
ao jornalista. Mas só consegui levar adiante a ousadia após me mudar para
Santarém, às margens do rio Tapajós. Viver aqui é uma experiência de
encantamento diário. Tomar banho em suas águas azuis, contemplar diariamente o
por do sol, embalar-se ao som ritmado dos motores das embarcações que se perdem
no horizonte, assistir os pescadores se avizinhando pela manhã, escutar as
narrativas de suas gentes... mas nada emociona tanto quanto observar a relação
de afeto dos povos com o rio, que lhes proporciona autonomia (comida,
transporte, renda), sem nunca pedir nada em troca.
Fotografia 02: Amanhecer na aldeia Takuara, rio Tapajós. Foto: Rodrigo Oliveira. |
O rio Tapajós é uma das regiões
mais diversas do mundo, cultural e socialmente. É morada de dezenas de povos
indígenas, comunidades afrobrasileiras e tradicionais. No entanto, a região
está sob ameaça. Se outrora a bacia do rio Tapajós despertou a cobiça em razão
da borracha e do garimpo de ouro, atualmente ela está na mira de um arrojado
plano logístico e de infraestrutura. São planejadas hidrelétricas, portos,
rodovias, ferrovias, exploração minerária e florestal.
A concretização destes
projetos significaria uma alteração profunda nas formas de se viver na região.
Estou convencido de que não serão os cientistas ou acadêmicos que oferecerão a
resistência necessária ao avanço da fronteira capitalista sobre o rio Tapajós,
mas os povos indígenas e comunidades tradicionais, cujos modos de viver
representam uma alternativa ao projeto que está sendo imposto; cujo amor ao rio
sinaliza a disposição em seguir lutando até o fim, se preciso for.
Quisera ser capaz de
expressar em palavras o que é viver no rio Tapajós, assim conseguiria convencer
os leitores mais indiferentes ou longínquos a embarcarem nesta luta, para que a
que a nossa ciência não negue o afeto ou menospreze a sensibilidade, para que a
luta não nos embruteça, para que a tragédia do Xingu não nos baixe a cabeça,
para que a nossa resistência se faça com poesia, para que o amor nos mova e nos
una em defesa dos nossos rios, para que esta ode ao Tapajós não se transforme
em uma elegia.
* Rodrigo Oliveira é Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará e assessor do Ministério Público Federal em Santarém, Pará. Publicado originalmente em inglês, espanhol e português no sítio Amphibious Accounts: Human Rights Stories from the Global South