segunda-feira, 2 de julho de 2012

Matando por terras

Pouco antes de morrer, o cineasta Adrian Cowell liberou um documentário com cenas brutais da guerra travada na Amazônia brasileira. Filmada nos anos 80, a obra manteve-se inédita no Brasil por mais de duas décadas para proteger as testemunhas de assassinatos. Nesta semana, o filme será exibido pela primeira vez – e poderemos constatar que o passado continua dolorosamente presente

Eliane Brum*

Cena 1 – Os homens andam pela floresta. Eles têm pés de andar, machucados pelas raízes, pelo sol, pela chuva, pelo caminho. E velhas espingardas nas mãos. No rosto, a expressão dos que foram lançados uma curva além. São homens desesperados – e homens desesperados não têm nada a perder. Exceto a vida, mas esta eles vão perder de qualquer jeito. Em busca de terra, já não há para onde ir. Exceto mais e mais para dentro. “A gente vai ficar. Se for, a gente só morre mais depressa”, diz um. Ali, eles já morrem depressa demais. É o corpo de um companheiro que vão buscar. Raimundo Piauí, posseiro como eles, sem-terra em busca de terra, apodrece há sete dias na mata. Assassinado por pistoleiros a mando de fazendeiros na guerra cotidiana travada na Amazônia. 

Cena 2 – Ele é só um velho caçador, com uma espingarda de caça quase tão velha quanto ele. Os pistoleiros sabem disso. Mas não importa. Ele está ali, fácil e frágil. E é preciso dar um aviso aos posseiros que lutam pela terra. Os pistoleiros exigem a espingarda. Ele não entrega. Não entrega porque não pode entregar. Sem ela, morrerá de fome no meio da mata. É morrer de um jeito – ou de outro. Ele se vira. Os pistoleiros o abatem pelas costas. Um tiro atinge a sua boca, os dentes se espalham. Ele cai. João Ventinho era o seu nome. Mais um, só mais um ninguém cuja vida jamais será paga na Justiça. 

Cena 3 – O homem corre. Os pistoleiros o perseguem atirando. O homem carrega uma criança nas costas. O menino grita primeiro. As últimas palavras do homem são: “Ô malvadeza”. Os dois corpos tombados na terra. O do posseiro Sebastião Pereira, liderança rural. E o de Clésio, de três anos. Um corpo de menino na mesa do necrotério, vítima de uma guerra que o matou antes que pudesse entendê-la. Uma guerra onde as crianças recebem balas de chumbo.  

Estas cenas reais fazem parte do documentário Matando por terras (52 minutos), que será exibido pela primeira vez no Brasil nesta quinta-feira (5/7), no CineSesc, em São Paulo. Filmado nos anos 80, ele não pôde ser mostrado aqui por mais de duas décadas para não expor as testemunhas dos crimes – e condená-las também à morte.
A guerra da Amazônia: Depois de ter suas casas queimadas, um grupo de sem-terra se arma para se proteger dos pistoleiros, nesta imagem do filme Matando por terras (Foto: Divulgação)

O filme revela, de forma crua e persistente, como possivelmente nenhum outro documentário sobre o tema, a guerra travada na Amazônia. Uma guerra que, antes como agora, a maioria finge desconhecer. Rodado ao longo da rodovia Belém-Brasília, documenta o conflito entre fazendeiros – temerosos de perder os privilégios garantidos pela ditadura militar – e sem-terra. Mais de 100 pessoas foram mortas na região neste período.  

A versão brasileira de Matando por terras foi o último trabalho do cineasta britânico Adrian Cowell. Ele se preparava para viajar ao Brasil para concluí-la quando morreu de ataque cardíaco, em Londres, no último 10 de outubro. Tinha 77 anos – 50 deles filmando a Amazônia. É pelo olhar de Adrian, um homem nascido na China e criado na Inglaterra, que uma parte da memória brasileira foi preservada. Não tivesse ele desembarcado no Brasil em 1957, aos 23 anos, para filmar o Monte Roraima, e uma parte crucial da saga amazônica teria permanecido invisível, sepultada em sangue e silêncio. Este testemunho único será exibido de 5 a 12 de julho, numa mostra em sua homenagem, promovida pelo CineSesc. (Confira a programação completa aqui.)

Adrian Cowell produziu o maior registro audiovisual da Amazônia. Todo o seu acervo foi doado à PUC de Goiás e está disponível para ser acessado: quase 900 mil metros de filme, sete toneladas que se transformaram em 30 documentários. Neste percurso, Adrian conviveu com Orlando Villas-Boas antes mesmo da criação do Parque Indígena do Xingu. Trabalhou também com Apoena Meireles, outro grande sertanista, assassinado em 2004 durante um assalto em Porto Velho (Rondônia). Em meio século, ele filmou um Chico Mendes ainda desconhecido do próprio Brasil – e o seu trabalho ajudou a projetar o líder seringueiro no mundo. 

Adrian filmou tribos isoladas e filmou a destruição. Enquanto ele capturava a vida em um embate de morte, seus personagens tombavam junto com a floresta. Às vezes, antes mesmo do final do filme. Adrian começou a filmar Chico Mendes porque o personagem cuja história planejara contar, Padre Josimo, um religioso negro da Comissão Pastoral da Terra, foi assassinado no Tocantins pouco antes do início das filmagens. E Chico Mendes foi executado ao longo das gravações da série mais famosa de Adrian, A década da destruição, que será exibida na mostra.

O cineasta acreditava que um dia documentaria "A década do meio ambiente", com o fim da devastação da Amazônia. Morreu com seu sonho – mas sua obra teve uma importância crucial para que a preservação da floresta e dos povos da floresta deixasse de ser uma questão de ecologistas para se tornar um problema do mundo. 

Em 1980, Adrian conheceu o cinegrafista brasileiro Vicente Rios e, juntos, filmaram pelos 30 anos seguintes. “Rios e Cowell formaram uma poderosa dupla, como aquelas de pistoleiros do Velho Oeste, retratadas pelos filmes de Sergio Leone”, escreveu o jornalista Felipe Milanez, idealizador e curador da mostra. “Por vezes, andaram literalmente armados de revólver, para o caso de precisarem se defender, como em Serra Pelada, ou então portando uma arma muito mais poderosa: a câmera.” 

Quem quiser conhecer as aventuras vividas pela dupla poderá ouvir da boca do próprio Vicente, na abertura da mostra e em algumas sessões apresentadas por ele. Vicente Rios também exibirá um documentário inédito – Visões da Amazônia. A obra apresenta cenas de bastidores das filmagens e coloca Adrian diante das câmeras, fazendo uma reflexão sobre suas memórias e sua paixão pela floresta. 

Adrian apaixonou-se tanto pela Amazônia e pelo seu povo que deu ao filho um nome que junta mundos: Xingu Cowell. O menino morreu em um acidente de caiaque, aos 18 anos, no mesmo ano em que Adrian começou a filmar Matando por terras, no sul do Pará. O próprio Adrian participaria da mostra de cinema em homenagem à sua obra, mas tombou no meio do gesto. Até o fim, ele acreditou que a floresta poderia ser salva. E lutou por isso.
Morrendo por terras: Posseiros enterram um companheiro assassinado por pistoleiros, em uma cena filmada por Adrian Cowell (Foto: Divulgação

Em 6 de junho de 2011, Adrian escreveu para o jornalista Felipe Milanez. O cineasta acabara de saber do assassinato de José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo. O casal foi executado a tiros nas proximidades do assentamento onde viviam, em Nova Ipixuna, no sul do Pará. Adrian dizia, com o português que aprendeu enquanto se embrenhava na selva, que o filme “Matando por terras”, ainda inédito, mostraria que os assassinatos registrados por ele, 25 anos atrás, continuavam se repetindo no Brasil de hoje. Foi assim, porque o filme é presente tanto quanto passado, que a versão brasileira foi feita.

Na Amazônia, o século 20 invadiu o século 21, a violência tolerada (e muitas vezes patrocinada) pela ditadura persistiu na democracia. E os mesmos de sempre seguem tombando a tiros. Adrian Cowell poderia ter filmado cada uma das cenas a seguir. Todas elas – e muitas outras – aconteceram há pouco. E continuam se desenrolando neste exato momento.

Cena 1 – Zé Cláudio e Maria, lideranças que vivem da extração de castanha, estão perto do assentamento onde vivem. Zé dirige, Maria se agarra a ele na garupa. Assim que Zé diminui a velocidade da moto para passar sobre a ponte que cobre um igarapé, são atacados pela dupla de pistoleiros. O primeiro tiro de escopeta atravessa a mão direita de Maria e atinge o lado esquerdo do abdômen de Zé. Em seguida, mais tiros de escopeta e de um revólver calibre 38. Um dos assassinos puxa a faca, caminha até Zé Cláudio e corta um pedaço de sua orelha direita. Uma prova do serviço feito para entregar ao mandante. É 24 de maio de 2011. Hoje, é Laísa Santos Sampaio, irmã de Maria, que vive sob ameaça de morte. (Assista aqui ao depoimento de Zé Cláudio.)

Cena 2 – João Chupel Primo, mais conhecido como João da Gaita, trabalha na sua oficina mecânica, em Itaibuba, no oeste do Pará. Um minuto depois está morto, com uma bala na cabeça. É 22 de outubro de 2011. Caçado por pistoleiros, seu amigo Júnior José Guerra começa a fugir. Os dois haviam denunciado a quatro órgãos federais e dois estaduais uma milionária operação criminosa de roubo de ipê do interior de áreas de preservação. Toda a madeira passava – e continua passando – por um assentamento do Incra, entre os municípios de Itaituba e Trairão. João e Júnior denunciaram também 15 assassinatos consumados nos últimos dois anos na região por causa da posse da terra e do controle da madeira. Denunciaram às autoridades – e não foram protegidos. (Leia aqui.)

Cena 3 – Em 2010, a líder rural Nilcilene Miguel de Lima foi espancada e teve sua casa queimada, no município de Lábrea, no Amazonas, depois de denunciar a grilagem e o roubo de madeira em seu assentamento. Em maio de 2011, fugiu enrolada em um lençol do pistoleiro atocaiado perto da sua casa. Só voltaria em outubro, protegida por uma escolta da Força Nacional. Em 30 de março de 2012, sua amiga Dinhana Nink, de 27 anos, foi a sétima pessoa assassinada na região nos últimos cinco anos por denunciar madeireiros e pistoleiros. Ela tinha fugido para Rondônia para escapar da morte, mas a alcançaram. Mataram-na com um tiro no peito diante do mais jovem de seus três filhos, Tiago, de 6 anos. Quando o pai de Dinhana encontrou o corpo, Tiago limpava o sangue do rosto da mãe. No último 19 de maio, a Força Nacional interrompeu a proteção a Nilcilene, e ela teve de deixar sua casa e a colheita para trás para se esconder mais uma vez. É nesse desamparo que se encontra agora. (Leia aqui.)

A guerra na Amazônia continua, como Adrian Cowell apontou pouco antes de morrer. Em “Matando por terras”, ele registra a campanha presidencial de 1989. Nela estão Lula, Fernando Collor e Ronaldo Caiado. Lula nos históricos comícios bordados de bandeiras vermelhas do PT, ao som do povo cantando “Lula-lá” com esperança e orgulho na voz. Collor fazendo promessas no tom histriônico de “caçador de marajás”, e Caiado incitando os fazendeiros a reagir contra os “invasores”. Em certo momento do filme, ainda aparece Paulo Brossard, então ministro da Justiça, reagindo com veemência às denúncias de assassinatos na Amazônia, feitas pela Anistia Internacional, com uma frase que já era popular naquela época: “É uma fantasia!”.

O Lula de 1989 diz: “A única forma de acabar com a violência é punindo. E fazendo a reforma agrária”. Collor foi eleito e depois deposto por impeachment. Fernando Henrique governaria por dois mandatos. Só então Lula se elegeria por duas vezes e ainda faria a sucessora. Mais de duas décadas depois, a realidade mostra que o mesmo filme poderia ter sido feito hoje – apenas com novos cadáveres.

Antes, os mortos eram chamados de sem-terra ou posseiros. Hoje, a maioria é “assentado”. No papel, conquistou-se assentamentos do Incra, reservas extrativistas, florestas nacionais. Mas as conquistas dos anos de democracia não alcançaram o concreto dos dias: o Estado que está no papel não está na vida. Há vastas porções da Amazônia sob o controle do crime organizado – cada vez mais sofisticado e com braços mais longos. Sem o apoio do Estado, quem denuncia o “malfeito” assina sua sentença de morte. E vive seus últimos dias na insanidade: quem morre hoje estava marcado para morrer, avisou às autoridades que morreria, documentou as ameaças e os pedidos de socorro, às vezes em vídeo – e morreu.

Adrian Cowell emprestou seus olhos e arriscou sua vida por meio século para mostrar o que muitos brasileiros não queriam ver. Conhecer sua obra é um bom começo para mudar esse filme. 

*Eliane Brum escreve às segundas-feiras para o sítio da Revista Época

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