MANIFESTO DOS SERVIDORES E SERVIDORAS EM GREVE
DA FUNAI AOS POVOS INDÍGENAS
Brasília/DF,
03 de julho de 2012
Comunicamos
aos povos indígenas, suas organizações e associações que os/as servidores/as da
Funai sede, em Brasília, deflagraram greve por tempo indeterminado no dia 21 de
junho, após deliberação em assembleia. As Coordenações Regionais e
respectivas Coordenações Técnicas Locais estão, paulatinamente, aderindo ao
movimento, cujo objetivo é atingir a adesão nacional.
A greve
da Funai vem se somar ao movimento de greve nacional dos servidores públicos
federais, em defesa do serviço público de qualidade e da valorização das
respectivas carreiras.
A questão
indígena não tem sido uma prioridade para o Estado Nacional e menos ainda para
o atual governo. Nesse cenário, a luta na Funai passa pela valorização da
instituição e pela aplicação da política indigenista. Política esta que passa
por uma reviravolta a partir do marco constitucional de 1988[1], em que, pela
primeira vez, a perspectiva assimilacionista e assistencialista do Estado foi
deslocada em direção ao respeito à multiplicidade étnica e às diversas formas
de territorialidade dos povos indígenas.
Porém,
essa luta ainda está em processo, uma vez que os direitos não estão garantidos
em sua plenitude, com destaque para a defasagem na regularização fundiária dos
territórios indígenas. Ao longo da história, quase 90% do território
nacional foi sendo expropriado dos povos indígenas. Dos 12% atualmente
reconhecidos como territórios indígenas pelo Estado, menos de 60% estão
regularizados e boa parte desse total não se encontra na posse plena das
populações indígenas, gerando graves problemas de desestruturação
socioambiental e cultural.
Da mesma
forma, é preciso repensar o lugar que ocupam a saúde e a educação indígenas,
dois direitos conquistados durante longas décadas de discussões e lutas do
movimento indígena, e que ainda não foram implementadas de forma efetiva e
adequadas às especificidades dos povos indígenas.
Entendemos
que a Funai deva exercer um papel mais atuante no desenvolvimento de ações
complementares e diferenciadas, fortalecendo as ações dos órgãos diretamente
responsáveis pelas políticas de educação e saúde, bem como das outras Políticas
de Estado voltadas aos povos indígenas.
Além
disso, enquanto órgão indigenista, a Funai deve apoiar os povos indígenas para
o exercício do controle social sobre essas Políticas para que as mesmas sejam
adequadas às suas especificidades e interesses.
No
contexto das questões levantadas acima, a Política Nacional de Gestão
Territorial e Ambiental de Terras Indígenas – PNGATI[2] passa a ser um
instrumento importante de reconhecimento da autonomia e protagonismo dos povos
indígenas por meio da gestão que fazem de seus territórios. A Política foi
conquista de um intenso debate e mobilização do movimento indígena, que
demandou do Estado brasileiro o reconhecimento da importância dos modos de vida
tradicionais e do manejo e conservação da biodiversidade nos territórios
ocupados.
Entretanto,
esse instrumento jurídico ainda carece de garantia orçamentária e política por
parte dos órgãos responsáveis para sua aplicação. Ressalta-se que a execução
dessa Política dependerá decisivamente de uma Funai que consiga trabalhar de
forma eficiente junto aos indígenas em seus territórios. Para tanto, é
fundamental que se tenha estrutura administrativo-financeira, pessoal qualificado
e definição das normas e procedimentos internos ao órgão.
A Funai,
historicamente, vem sofrendo um processo de sucateamento que reflete o
desinteresse do Estado brasileiro com relação à política indigenista, fundiária
e ambiental. A Funai há quase três anos passa por um processo de reestruturação
que ainda não se deu na prática, acarretando a inexistência ou a existência
precária de várias Coordenações Técnicas Locais, Frentes de Proteção
Etnoambiental e até mesmo de Coordenações Regionais.
Os/As
servidores/as são submetidos a condições degradantes de trabalho, sem condições
mínimas de logística para atendimento às demandas dos povos indígenas; sem
acesso a meios de comunicação com as outras unidades, inclusive com a Funai
sede; com procedimentos burocráticos ultrapassados que implicam a extrema
dificuldade de acesso aos recursos e execução das atividades junto aos povos
indígenas. Somam-se a esses problemas o contigenciamento de recursos imposto
pelo Governo Federal e o baixo efetivo de servidores, sem o suporte
institucional adequado de cursos de formação para as funções exercidas.
Além
disso, a baixa remuneração dos servidores tem sido um importante fator de
evasão e precariedade dos serviços prestados. Não há política de
capacitação/qualificação, de qualidade de vida no trabalho, tampouco política
salarial. Os concursos para provimento de vagas são pouco atraentes e mesmo os
escassos processos seletivos realizados foram incapazes de recompor o quadro de
servidores. Dos 2.585 servidores ativos da Funai, 35% poderão se aposentar até
o final de 2013, e dos remanescentes, 47% estarão aposentados até 2020.
Esses
dados reforçam a necessidade premente de novos concursos de provimento de
cargos vinculados a melhorias estruturais e de carreira, de modo que a
instituição construa uma política de valorização, garantindo a permanência de
bons profissionais.
Além da
falta de orçamento, pessoal e condições de trabalho, outro grande gargalo para
a reestruturação do órgão está na ausência de um processo democrático e
participativo dos servidores na construção do Regimento Interno e em algumas
inconsistências relativas à localização das unidades descentralizadas.
Fica
evidente, portanto, que o Estado não vem oferecendo condições materiais e
humanas para o pleno funcionamento do órgão indigenista, impedindo o
cumprimento da missão institucional da Funai e, assim, o atendimento à
Constituição Federal no que concerne aos direitos garantidos aos povos
indígenas.
Por isso,
trazemos ao debate: a necessidade de que todas as Coordenações Técnicas Locais
entrem em funcionamento para o adequado trabalho junto aos povos indígenas; de
que as Coordenações Regionais sejam dotadas de estrutura física e de pessoal
qualificado para a execução de suas atribuições; a desburocratização e promoção
da autonomia técnico-administrativas das Coordenações Regionais; a criação de
normativas que aprimorem e agilizem os procedimentos internos da Funai; a
criação e aprovação do Plano de Carreira Indigenista que reconheça e valorize a
real situação na lida diferenciada dos funcionários desta Fundação com as
comunidades indígenas; a participação indígena e de servidores nas discussões
sobre a reestruturação da Funai; a realização de concurso público para
provimento total dos 3100 cargos previstos no Decreto 7056/09, incluindo a
previsão de cotas para indígenas; a discussão e construção conjunta e
participativa do Regimento Interno; e, que o orçamento da Funai seja
compatibilizado às suas demandas, dentre outras ações estruturantes para a
Fundação, como reivindicações a serem discutidas para além da greve.
Como
manifestado pelo movimento indígena[3], repudiamos ais a impunidade,
a violência e a perseguição de lideranças indígenas; os grandes empreendimentos
em territórios indígenas e a falta de poder de decisão dos povos indígenas
sobre a construção desses empreendimentos, em contradição à Constituição
Federal e à Convenção 169 da OIT; a diminuição dos territórios indígenas; o
enfraquecimento da legislação indigenista e da política ambiental que interfere
diretamente na disponibilidade e na qualidade dos recursos naturais essenciais
para a sobrevivência física e reprodução cultural dos povos indígenas; a
tentativa de, por meio da PEC 215, transferir ao Congresso Nacional a
competência para a demarcação e homologação de terras indígenas.
Repudiamos
ainda a recomendação inconstitucional da presidenta Dilma Rousseff de submeter
à aprovação do Ministério de Minas e Energia todos os processos de
regularização fundiária de terras indígenas antes da expedição de decreto
homologatório; a morosidade nos processos de regularização fundiária; o
desmonte do Código Florestal; a discussão do projeto de lei que regulamenta a
mineração e o aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas sem
considerar as proposições contidas no novo Estatuto dos Povos Indígenas, que
está em tramitação no Congresso há mais de uma década; a Portaria 419, que
atropela os trâmites técnico-processuais próprios ao processo de licenciamento
ambiental, em favor de maior celeridade na condução dos empreendimentos de
infraestrutura nacionais.
Exigimos
do Estado as condições adequadas para a regularização fundiária e a proteção
dos territórios indígenas; a melhoria dos serviços de saúde prestados aos povos
indígenas; a valorização dos processos educacionais indígenas e o diálogo
intercultural simétrico que respeite as especificidades étnicas e culturais de
cada povo; a participação dos povos indígenas no planejamento decenal dos
setores de infraestrutura e energético, responsável pelos projetos de
empreendimento que afetam diretamente seus territórios; a aprovação do novo
Estatuto dos Povos Indígenas; a regulamentação do direito de consulta dos povos
indígenas, conforme disposto na Convenção 169 da OIT; ação efetiva dos demais
órgãos afetos a políticas indigenistas, a exemplo do Ministério da Saúde,
Ministério da Educação, Ministério da Cultura, Ministério do Desenvolvimento
Agrário, Ministério do Meio Ambiente, dentre outros; capacidade administrativa
para a Funai coordenar, implementar, executar e acompanhar toda a política
indigenista do estado brasileiro.
Convidamos
os povos indígenas, por meio de suas principais esferas de representação, como
APIB, COIAB, ARPINPAN, ARPINSUL, ARPINSUDESTE, APOINME, ATY GUASSU, bem como as
demais organizações e iniciativas indígenas de nível local e regional a se
juntarem a nós, servidores do órgão indigenista oficial, na construção conjunta
desse movimento que visa à garantia efetiva dos direitos indígenas e
indigenistas.
Servidoras
e Servidores em Greve da Funai
[1]
Durante as décadas de 1970 e 1980 há um intenso processo de discussão e politização
do movimento indígena e indigenista não oficial, que culmina na participação
decisiva de algumas lideranças indígenas na construção do texto constitucional
vigente.
[2]
Aprovada por meio de Decreto Presidencial (nº 7.747, de 05 de junho de 2012) e
não por meio de um Projeto de Lei, que garantiria maior segurança e força do
ponto de vista jurídico.
[3]
Documento Final do IX Acampamento Terra Livre – Carta do Rio