A reforma agrária do
governo federal, no Pará, continua mal das pernas. A doença que paralisa suas
ações chama-se ineficiência, já foi diagnosticada há décadas, e acomete o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O governo teima em
não fazer o tratamento adequado para curar a doença, já gastou mais de R$ 20
bilhões no Estado na criação de assentamentos, repasse de dinheiro para
moradia, alimentação, estradas e educação, além de custos com desapropriações
de fazendas, mas o paciente não melhora. A medicação cuida dos efeitos e não
ataca as causas.
Os equívocos se acumulam,
provocando a reação do Ministério Público Federal (MPF), que desde 2007 já
moveu onze ações judiciais contra o Incra por desvio de recursos, assentamentos
“fantasmas”, fraudes na aplicação de créditos e outros crimes. Procuradores da
República batem duro no desperdício do dinheiro público, na corrupção, na
fiscalização deficiente, além da degradação ambiental.
Com ou sem o título da
terra nas mãos, famílias sobrevivem sob barracas de lona, em locais de difícil
acesso, carentes de estrada, escola, posto de saúde, telefone e iluminação. Os
que deveriam ser beneficiados por um programa de justiça social mal conseguem
produzir alimentos para a própria subsistência.
No meio dessa roda-viva
surgem espertalhões que ganham dinheiro desviando créditos oficiais para os
próprios bolsos. Tudo sob as bençãos de uma realidade assustadora: não há
ninguém na cadeia.
A dose perfeita da
violência no campo: muita terra disponível, ineficiência dos assentamentos,
comercialização ilegal de lotes, invasões, acirramento de conflitos com
fazendeiros. Nos últimos anos, 212 pessoas foram assassinadas em conflitos
agrários na região sudeste do Estado. Exemplo mais perverso foi o do casal de
extrativistas José Cláudio e Maria do Espírito Santos, no assentamento Praia
Alta Piranheira, em Nova Ipixuna.
DISPUTA
A disputa por lotes na
localidade Maçaranduba II, onde um dos acusados, com o objetivo de ampliar a
sua criação de gado, teria adquirido ilegalmente dois lotes no assentamento,
foi a causa do crime. Um desses lotes era ocupado por três famílias lideradas
pelo casal de extrativistas. No inquérito aparecem depoimentos e informações
que atestam a ilegal comercialização (e reconcentração) de lotes contíguos por
parte dos acusados.
A reconcentração de lotes,
decorrente da venda ilegal de terras da União, de acordo com levantamento da
Comissão Pastoral da Terra (CPT), confirmado pelo próprio Incra e pela
Ouvidoria Agrária do Pará, é uma das principais causas dos conflitos e das
mortes. Em 2009, o Incra admitiu em publicação que o número de lotes
reconcentrados dentro de assentamentos “pode chegar a 15.000 unidades,
superando até a quantidade de famílias acampadas atualmente na região, cerca de
11.000”.
ACUSAÇÃO
Por conta disso, o MPF
acusa o Incra de “recalcitrante omissão”, e de desembolsar cifras consideráveis
na desapropriação de imóveis particulares, ao invés de investir em ações
concretas visando regularizar a situação ocupacional dos projetos de
assentamento- o que permitiria a retomada de lotes indevidamente ocupados e
reconcentrados para promover o assentamento de milhares de famílias – e na
infra-estrutura dos projetos de assentamento da região, cuja precariedade
estimula sobremaneira o abandono, o comércio ilegal e a consequente
reconcentração ilegal de lotes.
A situação ocorre em quase
500 assentamentos. Se houvesse a pronta intervenção do Incra, milhares de lotes
- já demarcados, inclusive – seriam retomados e reutilizados para promover o
assentamento de inúmeras famílias, o que, por certo, tornaria desnecessária a
desapropriação de imóveis particulares para fins de assentamento,
proporcionando uma economia considerável de recursos utilizados para indenizar
os titulares dos imóveis desapropriados. A Justiça Federal de Marabá tem esses
números e eles revelam a face de um monumental desperdício de dinheiro.
Conclusão do MPF: são
pouquíssimos os casos e os projetos de assentamento em que o Incra fez
corretamente o levantamento ocupacional. Um número insignificante diante do
universo de 500 áreas literalmente abandonadas.
O Incra de Marabá,
procurado pelo DIÁRIO, não quis se manifestar sobre as denúncias do MPF. Já o
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) informou que os entraves que ainda
existem no programa de reforma agrária são poucos e estão sendo resolvidos. No
ano passado, de acordo com o MDA, foram assentadas 22.600 famílias em todo o
país, número que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
considera “vergonhoso”. No caso do Pará, o Ministério diz que os assentamentos
estão recebendo novas moradias e condições adequadas para os agricultores e
seus familiares.
Recentemente, o Incra de
Marabá entregou 113 casas nos assentamentos Raio de Sol I e II, no município de
Pacajá. A entrega das habitações faz parte da primeira etapa do contrato de
construção realizado entre as associações de assentados dos seis núcleos dos
assentamentos e uma construtora do município de Marabá. As casas, feitas em
alvenaria, possuem quatro cômodos: uma sala, dois quartos e uma cozinha, além
do banheiro.
O silêncio como resposta
em vários pedidos do MPF
Vários procedimentos
administrativos do MPF de Marabá foram tomados para apurar esse tipo de sangria
dos cofres públicos. Um deles envolve Miguel Gomes Siqueira, conhecido por
“Miguel Pernambuco”, no projeto de assentamento Cinturão Verde I, o que estaria
inclusive impedindo a instalação dos postes de iluminação do programa do
governo federal Luz para Todos. A procuradoria requisitou ao Incra informações
e realização de vistoria no local apontado onde estaria ocorrendo a
concentração de lotes destinados à reforma agrária. Não houve resposta do Incra.
Outro pedido de
informações, também sem resposta, foi remetido ao Incra com base em declarações
prestadas por um lavrador acerca do conflito agrário existente entre ele e um
homem conhecido por Agripino, com possível envolvimento de servidores do Incra.
No curso do procedimento, passou-se a apurar a reconcentração de lotes dos
projetos Maravilha e Cabanagem.
LOTES
Outro agricultor, que há
seis anos reside na área conhecida por Volta do Tapirapé, motivou outro
procedimento do MPF, ao informar que, apesar de ainda não ter sido devidamente
assentado no local, o fazendeiro José Lira, que não é cliente da reforma
agrária, possui vários lotes no assentamento. A ilegalidade seria de
conhecimento de servidores do Incra. A procuradoria da República requisitou ao
Incra providências, mas o órgão respondeu de forma insatisfatória, informando
que havia realizado vistoria nos lotes. Apesar disso, não tomou qualquer medida
para regularizar a situação.
Em um ofício enviado ao
MPF, a Associação Vitória do Araguaia informou que havia pessoas não
habilitadas a receber lotes da reforma agrária, ocupando terras irregularmente
nos assentamentos Campo Alegre, Pau Brasil e Airton Sena. O Incra prestou
informações, em maio de 2009, afirmando que tinha ciência da concentração de
lotes no assentamento e que estaria incluindo os projetos de assentamento no
cronograma de ações de retomada, prometendo encaminhar os relatórios ao MPF. Os
documentos não foram enviados e nem apresentadas informações complementares .
TALISMÃ
Outro inquérito civil
público foi instaurado a partir de denúncias de assentados sobre venda e
reconcentração de lotes no assentamento Talismã. Foi requisitado ao Incra que
procedesse a um levantamento dos lotes reconcentrados ou indevidamente
vendidos. Também não houve resposta. O mesmo ocorreu em outro inquérito, a
partir de representação feita pelo movimento Luta pela Terra São Francisco de
Assis. A intenção era fazer o Incra retomar lotes vendidos no assentamento
Tartaruga. Nessa área, 30 lotes estavam em poder de “laranjas” de fazendeiros.
Nos assentamentos Hamilton
Cordeiro Celso, Conceição e Rio Preto, as irregularidade com lotes são
gritantes, segundo a Associação dos Pequenos Trabalhadores Rurais Regionais do
Sul do Pará. O Incra foi provocado a fazer uma vistoria na área, mas não deu
resposta ao MPF. Mais denúncias que redundaram em inquéritos: fazendeiros
ocupam irregularmente lotes no assentamento São Pedro II, em Santa Maria das
Barreiras. Provocado, o Incra realizou vistoria no local, confirmando a
denúncia. Quanto às providências, não há nenhuma notícia.
1- Custos da reforma
agrária no Pará: R$ 20 bilhões.
2- Lotes de terra vendidos
e reconcentrados em assentamentos: 15.000
3- Número de famílias
acampadas à espera de terra no sul/sudeste do Estado: 11.000.
4- Se os lotes irregulares
fossem retomados pelo Incra daria para assentar todas as famílias acampadas e
ainda sobrariam mais 4.000 lotes
5- Principais problemas da
reforma agrária paraense: ineficiência do Incra, desperdício de recursos,
corrupção e degradação ambiental
Fonte: Diário do Pará, 20
de julho de 2012