De maneira flagrantemente parcial, a mídia brasileira tem criminalizado
a regularização fundiária de terras habitadas por populações indígenas no país.
Para resumir os alarmantes argumentos, a ideia mais comum veiculada é a de que
esses processos são artifícios fraudulentos, que transformariam “terras
produtivas” e de “gente que trabalha”, em “reservas indígenas”. Para bom
entendedor, meia palavra basta, como é de domínio popular. O que se anuncia é
que terras “produtivas” serão tornadas “improdutivas” e, paralelamente a isso,
“gente que trabalha” será como que “substituída” por “gente que não trabalha”,
isto é, “índios” – como se os índios não trabalhassem ou produzissem. Esta
metamorfose perversa é atribuída, em muitos casos, a um suposto concerto criminoso
de forças nacionais e internacionais que atuariam em proveito próprio, tendo
pouca ou nenhuma relação com os legítimos ocupantes das terras.
Não é de hoje que este tipo de conjunção suspeita de ideias aparece na
opinião pública ou mesmo em documentos e outras manifestações formais
relacionados a trâmites legais ou matérias igualmente cruciais à existência das
populações indígenas. Estas mesmas ideias vêm se repetindo cronicamente no
tempo até os nossos dias, ao longo das muitas ondas desenvolvimentistas de
colonização que marcam a história do nosso país desde os tempos da coroa
portuguesa.
E sim. É sempre preciso trazer à luz o fato de que este arcabouço
ideológico cauciona, insidiosamente, ações e disposições tanto do Estado
brasileiro quanto de agentes privados na direção do extermínio, submissão e
esbulho daqueles povos. Lamentavelmente, estamos muito longe de poder acalentar
a esperança de lançar este fatídico ideário, repleto de trágicos fatos que
clamam por erradicação, às trevas da memória nacional. Em tempos de rápida
repercussão dos discursos através de mídias eletrônicas, há mesmo a impressão
de que este ideário estaria se multiplicando em incontáveis desdobramentos e
manifestações. De conversas informais em redes sociais a artigos de jornais, é
em documentos como Relatórios de Impacto Ambiental de grandes empreendimentos
econômicos ou em célebres contestações jurídicas aos processos de regularização
fundiária que ele aparece de forma mais perniciosa. Trata-se, no entanto, bem
mais de uma imensa cortina de fumaça comunicacional providencialmente
interposta entre a população e seus os direitos mais fundamentais, distorcendo
e obscurecendo o funcionamento dos principais instrumentos constitucionais de
resguardo desses direitos.
Como agravante central desta coleção de equívocos e distorções, está a
gravíssima acusação ética de que os antropólogos estariam supostamente
fraudando o estudo antropológico de identificação e delimitação, conforme ele é
juridicamente definido e regulamentado. É legítimo que o leitor se pergunte
sobre o que é exatamente isso. Não há qualquer registro na imprensa que,
afinal, lance verdadeira luz sobre o que é e como se faz, enfim, a
regularização de uma Terra Indígena no Brasil. O que é, por que e como acontece,
quem realmente faz, tudo isso permanece nas trevas e ignorado pelo grande
público ou mesmo por especialistas de outras áreas. Tudo converge em uma
situação que tem como resultado o total desconhecimento deste instrumento
técnico-jurídico e sua função primordial neste tipo de regularização,
representando um terreno fértil para as especulações mais estapafúrdias.
Respostas adequadas a tais perguntas permanecem ausentes de manchetes
rápidas, notícias ou editoriais dedicados a tratar – e quase sempre deslegitimar
– o assunto. No entanto, estas respostas estariam bem mais próximas a todos se
a Constituição Federal, como expressão e instrumento primordial de democracia e
cidadania, não viesse sendo completamente ignorada, senão sistematicamente
desfigurada, por meios de comunicação e outras frentes que atingem o grande
público. Se alguns o fazem quase involuntariamente, por mero desinteresse ou
desinformação, há os que o fazem deliberadamente, interessados que estão em dar
continuidade aos crimes efetivos raramente apurados, à exploração e à
desigualdade, contra os quais a carta magna se propõe a ser valioso instrumento
de representação coletiva.
*Lei todo o conteúdo do Manifesto coletivo divulgado por
antropólogos brasileiros AQUI