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domingo, 19 de abril de 2015

Matando por Terras na Curva do Massacre

O "Sal da Terra" foi exibido na Curva do S, o exato lugar do Massacre de Eldorado dos Carajás

Por Felipe Milanez*

Hoje [17 de abril] é dia, e noite, de luta. No Brasil inteiro. Principalmente nos fronts, nas frentes, nas fronteiras onde os conflitos sociais estão mais latentes. Dia e noite de mobilização e vigília. Para a luta pela terra, contra o latifúndio, em memória dos companheiros que tombaram, em defesa dos direitos indígenas, em defesa dos direitos da classe trabalhadora.
No sul do Pará, próximo a Eldorado dos Carajás, o MST organiza o acampamento da juventude na Curva do S, o simbólico espaço da morte, da violência e truculência ruralista, transformado em espaço de resistência. Em 17 de abril de 1996, 19 militantes foram brutalmente assassinados ali – enquanto dezenas de outros saíram feridos, alguns gravemente e vieram a morrer em decorrência da ação da polícia. O crime ficou mundialmente conhecido como O Massacre de Eldorado dos Carajás – e eternizado nas fotografias que Sebastião Salgado realizou do funeral.

Ao longo dessa semana tão marcante na região, a Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) está organizando o 1º Festival Internacional Amazônia de Cinema de Fronteira (FIA-Cinefront), que abriu na segunda-feira justamente com uma sessão do filme O Sal da Terra, de Juliano Ribeiro Salgado e Wim Wenders. O longa foi exibido no exato lugar do massacre, na Curva do S, em sessão absolutamente emocionante. Juliano, amigo que admiro muito, me enviou uma mensagem, desde o México, onde se encontra, para ser lida, na se dizia emocionado. “Não teria um lugar mais forte e simbólico do que a Curva do S” para passar o filme.

Evandro Medeiros, professor da Unifesspa e organizador e idealizador do festival, me convidou para ser o curador e disse que queria provocar debates. E temos conseguido. Tanto em Eldorado quanto no belo cinema Marrocos, uma sala vintage no centro antigo da cidade, e em Rondon do Pará. “A questão principal, e mais urgente, é a luta por Justiça”, disse ele em Rondon do Pará, onde mostramos o filme Ameaçados, de Júlia Mariano, e Toxic Amazônia, sobre a história do assassinato do casal José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo. Rondon do Pará é onde foi assassinado o brilhante líder sindical Dézinho (José Dutra da Costa, morto por um pistoleiro em 2000). O fazendeiro que ordenou o crime, um truculento sujeito conhecido como Delsão (Décio Nunes), foi condenado pelo júri popular um ano atrás, em 29 de abril de 2014, a 12 anos de prisão – e está em liberdade.

No público havia um companheiro de Dézinho, que recolheu seu corpo, um estudante filho de um companheiro de Dézinho, e um estudante que se apresentou como “filho de um latifundiário e neto de um madeireiro” e expôs a sua visão de mundo, calcada na luta de seu pai que chegou na Amazônia sem posses nenhuma. Nesse espaço, o debate de ideias fluiu tranquilamente, um no qual todos concordavam com a proposta inicial de Evandro: a luta por justiça. Talvez, em Rondon do Pará, fosse o caso de a elite e os grandes fazendeiros voltarem para a universidade.

Nesta quinta-feira 16, o MST faz uma longa vigília na Curva do S, onde, na amanhã de sexta-feira 17, ocorre um ato com a presença de autoridades, ministros, deputados.

Nesta quinta, vamos mostrar o filme Matando por Terras, de Adrian Cowell e Vicente Rios. Cowell, que faleceu em 2011, e Rios são os homenageados do festival, e também serão mostrados outros filmes que eles fizeram na região, como Montanhas de Ouro, sobre a Vale, e Barrados e Condenados, sobre a Usina Hidrelétrica de Tucuruí. Matando Por Terras é um filme sobre o sangrento conflito por terras no sul do Pará, e o assassinato de diversos camponeses nos anos 1980. Os crimes retratados no filme – que terá apenas a sua terceira exibição no Brasil – continuam impunes. Informou o advogado da Comissão Pastoral da Terra, José Batista Afonso, que recentemente reabriu um dos casos para tentar levar a júri o fazendeiro responsável pelo assassinato do líder sindical Sebastião Pereira e seu filho Clésio. Eliane Brum escreveu um belo comentário sobre o filme, que pode ser lido aqui.

Vicente Rios estará presente na sessão na Curva do S, depois de mais de duas décadas sem voltar à região que registrou com precisão em sua câmera. Uma geração de jovens sem-terra que nasceram depois de 1996 estão lá aprendendo a história do massacre para que não seja esquecido. Eles vão ter a chance de aprender sobre outros massacres que aconteceram nos anos 1980 e, não tivessem sido registrado, também poderiam estar sendo esquecidos.

Hoje é um dia e noite de luta, dia e noite de solidariedade aos camponeses que lutam pela terra, e aos povos indígenas mobilizados no Brasil inteiro em defesa de seus direitos fundamentais: a terra e a Terra.

*Publicado originalmente no blog do Felipe Milnaez no sítio da Carta Capital

Leia também: “A reforma agrária não foi feita quase 20 anos depois do Massacre de Carajás” -   Entrevista de João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do MST ao sítio do Brasil de Fato  

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Awás lutam contra a destruição dos madeireiros no que restou da Floresta Amazônica do Maranhão

Fotografia: Sebastião Salgado
Considerados um dos últimos povos caçadores e coletores, eles tentam sobreviver à ação criminosa dos desmatadores

No pouco que resta de Floresta Amazônica no Maranhão, vive o povo Awá, conhecido como “o mais ameaçado do planeta”. São pouco mais de 400 pessoas, cercadas de municípios que dependem da extração da madeira. Os Awá falam guajá, do tronco Tupi. Só alguns sabem um pouco de português. Eles são um dos últimos povos apenas caçadores e coletores. Vivem da floresta e pela floresta. O GLOBO esteve lá junto com o fotógrafo Sebastião Salgado para registrar o cotidiano desses índios poucos conhecidos e a dramática situação que os cerca.

A terra dos Awá-Guajá já foi demarcada, homologada e registrada com 116.582 hectares. Todas as contestações judiciais foram consideradas improcedentes. Ela está dentro da Reserva Biológica do Gurupi, criada pelo presidente Jânio Quadros em 1961, e que tem o mais alto nível de proteção ambiental. Mesmo assim lá estão os grileiros e os madeireiros derrubando a floresta e encurralando os índios. Essa área da Amazônia é única, porque é a porta de entrada da floresta, e algumas espécies só existem lá.

Os Awá fugiram do contato com os brancos por quase 500 anos. Chegaram a ser chamados de “índios invisíveis”. Foram contatados só a partir de 1979, e alguns indivíduos permanecem fugindo. Vivem o momento mais decisivo de sua sobrevivência. A Justiça ordenou a desocupação da terra pelos não índios, e a Funai terá que cumprir essa ordem nos próximos meses.

A ligação dos Awá com a floresta é ainda maior do que a de outros índios. Num discurso em guajá, um dos líderes da Aldeia Juriti, Piraima’á avisou:

— Os madeireiros estão matando as árvores. Vão matar os Awá. Eu vou enfrentar os madeireiros. Eu tenho coragem.

O Exército desembarcou na região com 700 homens, numa operação com o Ibama, para reprimir o ataque à floresta e a produção de maconha em terras indígenas e encontrou abundantes provas do crime de desmatamento. É o que conta essa reportagem que tem o privilégio de ter imagens do maior fotógrafo do mundo: Sebastião Salgado, que passou três semanas com os índios, por dias longe da aldeia e dentro da floresta.

Leia as reportagens de Miriam Leitão no sítio do jornal O Globo:
Paraíso sitiado 

Awás: a luta dos 'índios invisíveis' no paraíso sitiado

  • Madeireiros impõem sua lei na terra dos Awá

  • Terra Awá: no caminho da volta, o encontro com o crime

  • A tragédia do desmatamento atinge a terra e o céu

  • Ministro: retirada de terra Awá terá PF, Ibama e Exército
  • sábado, 25 de agosto de 2012

    Menina eternizada em foto de Sebastião Salgado ainda é sem-terra


    Por Paulo Cezas Farias*

    Aos cinco anos de idade, Joceli Borges foi retratada pela famosa câmera de Sebastião Salgado ao lado dos pais, que peregrinavam pelo interior do Paraná em busca de um lote de terra.

    Aquele rosto sujo de olhar provocativo virou capa de livro e ganhou espaço na mídia, em museus e em galerias do Brasil e do exterior.

    Passados 16 anos, a jovem de 21 anos continua uma trabalhadora rural sem terra.

    Vive com o marido e a filha em um acampamento do MST e diz ter dois sonhos: um lote e dois exemplares do livro que espalhou sua imagem mundo afora. "Um pra mim e outro pro meu pai."

    O livro "Terra", com o rosto de Joceli na capa, foi lançado em abril de 1997. Além de uma centena de fotos em preto e branco do meio rural brasileiro, o trabalho traz texto de José Saramago e vem acompanhado de um CD com músicas de Chico Buarque.

    À época, os sem-terra marchavam pelo país para lembrar o primeiro aniversário do massacre de 19 sem-terra em Eldorado do Carajás (PA), invadiam propriedades aos montes e colocavam a reforma agrária em destaque.

    Hoje o tema sumiu da agenda do governo federal, e, muito por conta da consolidação do Bolsa Família, os sem-terra não têm mais aquele exército de militantes.

    Terra Pequena

    Após o clique de Salgado, Joceli viu seus pais conquistarem a posse definitiva de um terreno. Era o fim de um drama: meses debaixo de barracos de lona, em um acampamento com alimentação escassa e sem água, saneamento e assistência médica.

    A família cresceu, ela se casou, teve uma filha, e decidiu se mudar para um acampamento do MST, mesmo sem a certeza de que um dia terá a sorte de seus pais.

    A fazenda está invadida há cinco anos --os donos tentam a reintegração na Justiça.

    "Não vi ele me fotografando. Parece que estou olhando para a foto, mas não lembro de ver alguém me fotografando. Nem minha família lembra o local exato onde foi. Fiquei sentida por sair toda desarrumada. Mas fico feliz pelo meu pai e minha mãe ter conquistado a sua terra."

    A imagem foi captada na margem da rodovia que liga Laranjeiras do Sul a Chopinzinho (oeste do Paraná).

    Até conseguir a entrevista, a reportagem teve três encontros com Joceli. No primeiro, ela não quis falar. Disse que ainda estava abalada pela morte da mãe com um tiro na cabeça em um acampamento de sem-terra, em 2009.

    Joceli, então com 17 anos, presenciou os disparos e, para se proteger, correu para o meio de um milharal. O alvo era um amigo de sua mãe, que sobreviveu mesmo atingido por dois tiros.

    Na segunda tentativa, ela afirmou que escreveria a sua trajetória.

    Só na terceira oportunidade aceitou falar, mas com a condição de que antes das fotos pudesse ajeitar o visual. "Um dos meus maiores sentimentos e do meu pai foi eu sair na foto do livro toda desarrumada", afirma.

    Joceli vive com o marido, Adair, e a filha, Joslaine, em acampamento a 15 km do centro de Quedas do Iguaçu.

    No dia a dia, planta o que chama de "miudezas": mandioca, batata doce, milho, feijão, melancia e verduras para vender na cidade.

    Sonhos
    Pai de Joceli, Alípio Borges vive em Rio Bonito do Iguaçu, a 85 km de Quedas.

    "Eu não conheço o homem que retratou minha filha. (...) Já recebi propostas de pessoas para entrar na Justiça e buscar direitos [pelo uso da foto], mas conheço muito da luta. Deixo isso nas mãos de Deus", afirma.

    O fotógrafo cedeu os direitos autorais do livro "Terra" ao MST. Joceli e Alípio dizem que nunca conversaram com Sebastião Salgado. Anos atrás, diz ela, um instituto criado pelo fotógrafo lhe ofereceu oportunidade de estudo em São Paulo. Para não ficar longe da família, recusou.

    E se encontrasse hoje com Sebastião Salgado? "Nem saberia o que falar. Quero é conquistar meu pedaço de terra. Acho que estudar não é mais importante para mim."

    *Fonte: Folha

    segunda-feira, 21 de junho de 2010

    "Terra", por José Saramago


    O massacre de Eldorado dos Carajás completava um ano. Dezenove integrantes do MST haviam sido brutalmente assassinados pela polícia. Em abril de 1997, o fotógrafo Sebastião Salgado, o escritor português José Saramago e o compositor Chico Buarque lançam um livro/cd para relembrar o fato e marcar a importância da luta pelo chão: Terra (Companhia das Letras, 1999).

    As fotos de Salgado retratam de forma realista os assentamentos e a vida dos trabalhadores rurais. A introdução, a cargo de Saramago, é dura. Lembra das promessas não-cumpridas do governo brasileiro pela reforma agrária.

    Entre as canções de Chico, duas exclusivas: Levantados do Chão (com Milton Nascimento) e Assentamento, que narra o sentimento de um migrante ao perceber que a cidade grande “não mora” mais nele.

    Abaixo, leia o prefácio do livro, escrito por José Saramago.



    É difícil defender

    só com palavras a vida
    (ainda mais quando ela é
    esta que vê, severina).
    João Cabral de Melo Neto

    Oxalá não venha nunca à sublime cabeça de Deus a idéia de viajar um dia a estas paragens para certificar-se de que as pessoas que por aqui mal vivem, e pior vão morrendo, estão a cumprir de modo satisfatório o castigo que por ele foi aplicado, no começo do mundo, ao nosso primeiro pai e à nossa primeira mãe, os quais, pela simples e honesta curiosidade de quererem saber a razão por que tinham sido feitos, foram sentenciados, ela, a parir com esforço e dor, ele, a ganhar o pão da família com o suor do seu rosto, tendo como destino final a mesma terra donde, por um capricho divino, haviam sido tirados, pó que foi pó, e pó tornará a ser. Dos dois criminosos, digamo-lo já, quem veio a suportar a carga pior foi ela e as que depois dela vieram, pois tendo de sofrer e suar tanto para parir, conforme havia sido determinado pela sempre misericordiosa vontade de Deus, tiveram também de suar e sofrer trabalhando ao lado dos seus homens, tiveram também de esforçar-se o mesmo ou mais do que eles, que a vida, durante muitos milênios, não estava para a senhora ficar em casa, de perna estendida, qual rainha das abelhas, sem outra obrigação que a de desovar de tempos a tempos, não fosse ficar o mundo deserto e depois não ter Deus em quem mandar.

    Se, porém, o dito Deus, não fazendo caso de recomendações e conselhos, persistisse no propósito de vir até aqui, sem dúvida acabaria por reconhecer como, afinal,
    é tão pouca coisa ser-se um Deus, quando, apesar dos famosos atributos de omnisciência e omnipotência, mil vezes exaltados em todas as línguas e dialectos, foram cometidos, no projecto da criação da humanidade, tantos e tão grosseiros erros de previsão, como foi aquele, a todas as luzes imperdoável, de apetrechar as pessoas com glândulas sudoríparas, para depois lhes recusar o trabalho que as faria funcionar - as glândulas e as pessoas. Ao pé disto, cabe perguntar se não teria merecido mais prémio que castigo a puríssima inocência que levou a nossa primeira mãe e o nosso primeiro pai a provarem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. A verdade, digam o que disserem autoridades, tanto as teológicas como as outras, civis e militares, é que, propriamente falando, não o chegaram a comer, só o morderam, por isso estamos nós como estamos, sabendo tanto do mal, e do bem tão pouco.

    Envergonhar-se e arrepender-se dos erros cometidos é o que se espera de qualquer pessoa bem nascida e de sólida formação moral, e Deus, tendo indiscutivelmente nascido de Si mesmo, está claro que nasceu do melhor que havia no seu tempo. Por estas razões, as de origem e as adquiridas, após ter visto e percebido o que aqui se passa, não teve mais remédio que clamar mea culpa, mea maxima culpa, e reconhecer a excessiva dimensão dos enganos em que tinha caído. É certo que, a seu crédito, e para que isto não seja só um contínuo dizer mal do Criador, subsiste o facto irrespondível de que, quando Deus se decidiu a expulsar do paraíso terreal, por desobediência, o nosso primeiro pai e a nossa primeira mãe, eles, apesar da imprudente falta, iriam ter ao seu dispor a terra toda, para nela suarem e trabalharem à vontade. Contudo, e por desgraça, um outro erro nas previsões divinas não demoraria a manifestar-se, e esse muito mais grave do que tudo quanto até aí havia acontecido.

    Foi o caso que estando já a terra assaz povoada de filhos, filhos de filhos e filhos de netos da nossa primeira mãe e do nosso primeiro pai, uns quantos desses, esquecidos de que sendo a morte de todos,
    a vida também o deveria ser, puseram-se a traçar uns riscos no chão, a espetar umas estacas, a levantar uns muros de pedra, depois do que anunciaram que, a partir desse momento, estava proibida (palavra nova) a entrada nos terrenos que assim ficavam delimitados, sob pena de um castigo, que segundo os tempos e os costumes, poderia vir a ser de morte, ou de prisão, ou de multa, ou novamente de morte. Sem que até hoje se tivesse sabido porquê, e não falta quem afirme que disto não poderão ser atiradas as responsabilidades para as costas de Deus, aqueles nossos antigos parentes que por ali andavam, tendo presenciado a espoliação e escutado o inaudito aviso, não só não protestaram contra o abuso com que fora tornado particular o que até então havia sido de todos, como acreditaram que era essa a irrefragável ordem natural das coisas de que se tinha começado a falar por aquelas alturas. Diziam eles que se o cordeiro veio ao mundo para ser comido pelo lobo, conforme se podia concluir da simples verificação dos factos da vida pastoril, então é porque a natureza quer que haja servos e haja senhores, que estes mandem e aqueles obedeçam, e que tudo quanto assim não for será chamado subversão.

    Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas mulheres, de todas estas crianças (sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra, assim lhes fora mandado), cujo suor não nascia do trabalho que não tinham, mas da agonia insuportável de não o ter, Deus arrependeu-se dos males que havia feito e permitido, a um ponto tal que, num arrebato de contrição, quis mudar o seu nome para um outro mais humano. Falando à multidão, anunciou: “A partir de hoje chamar-me-eis Justiça.” E a multidão respondeu-lhe: “Justiça, já nós a temos, e não nos atende. Disse Deus: “Sendo assim, tomarei o nome de Direito.” E a multidão tornou a responder-lhe: “Direito, já nós o temos, e não nos conhece." E Deus: "Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade, que é um nome bonito.” Disse a multidão: “Não necessitamos caridade, o que queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite.” Então, Deus compreendeu que nunca tivera, verdadeiramente, no mundo que julgara ser seu, o lugar de majestade que havia i
    maginado, que tudo fora, afinal, uma ilusão, que também ele tinha sido vítima de enganos, como aqueles de que se estavam queixando as mulheres, os homens e as crianças, e, humilhado, retirou-se para a eternidade. A penúltima imagem que ainda viu foi a de espingardas apontadas à multidão, o penúltimo som que ainda ouviu foi o dos disparos, mas na última imagem já havia corpos caídos sangrando, e o último som estava cheio de gritos e de lágrimas.

    No dia 17 de Abril de 1996, no estado brasileiro do Pará, perto de uma povoação chamada Eldorado dos Carajás (Eldorado: como pode ser sarcástico o destino de certas palavras...), 155 soldados da polícia militarizada, armados de espingardas e metralhadoras, abriram fogo contra uma manifestação de camponeses que bloqueavam a estrada em acção de protesto pelo atraso dos procedimentos legais de expropriação de terras, como parte do esboço ou simulacro de uma suposta reforma agrária na qual, entre avanços mínimos e dramáticos recuos, se gastaram já cinqüenta anos, sem que alguma vez tivesse sido dada suficiente satisfação aos gravíssimos problemas de subsistência (seria mais rigoroso dizer sobrevivência) dos trabalhadores do campo. Naquele dia, no chão de Eldorado dos Carajás ficaram 19 mortos, além de umas quantas dezenas de pessoas feridas. Passados três meses sobre este sangrento acontecimento, a polícia do estado do Pará, arvorando-se a si mesma em juiz numa causa em que, obviamente, só poderia ser a parte acusada, veio a público declarar inocentes de qualquer culpa os seus 155 soldados, alegando que tinham agido em legítima defesa, e, como se isto lhe parecesse pouco, reclamou processamento judicial contra três dos camponeses, por desacato, lesões e detenção ilegal de armas. O arsenal bélico dos manifestantes era constituído por três pistolas, pedras e instrumentos de lavoura mais ou menos manejáveis. Demasiado sabemos que, muito antes da invenção das primeiras armas de fogo, já as pedras, as foices e os chuços haviam sido considerados ilegais nas mãos daqueles que, obrigados pela necessidade a reclamar pão para comer e terra para trabalhar, encontraram pela frente a polícia militarizada do tempo, armada de espadas, lanças e alabardas. Ao contrário do que geralmente se pretende fazer acreditar, não há nada mais fácil de compreender que a história do mundo, que muita gente ilustrada ainda teima em afirmar ser complicada demais para o entendimento rude do povo.

    Pelas três horas da madrugada do dia 9 de Agosto de 1995, em Corumbiara, no estado de Rondônia, 600 famílias de camponeses sem terra, que se encontravam acampadas na Fazenda Santa Elina, foram atacadas por tropas da polícia militarizada. Durante o cerco, que durou todo o resto da noite, os camponeses resistiram com espingardas de caça. Quando amanheceu, a polícia, fardada e encapuçada, de cara pintada de preto, e com o apoio de grupos de assassinos profissionais a soldo de um latifundiário da região, invadiu o acampamento. varrendo-o a tiro, derrubando e incendiando as barracas onde os sem-terra viviam. Foram mortos 10 camponeses, entre eles uma menina de 7 anos, atingida pelas costas quando fugia. Dois polícias morreram também na luta.

    A superfície do Brasil, incluindo lagos, rios e montanhas, é de 850 milhões de hectare
    s. Mais ou menos metade desta superfície, uns 400 milhões de hectares, é geralmente considerada apropriada ao uso e ao desenvolvimento agrícolas. Ora, actualmente, apenas 60 milhões desses hectares estão a ser utilizados na cultura regular de grãos. O restante, salvo as áreas que têm vindo a ser ocupadas por explorações de pecuária extensiva (que, ao contrário do que um primeiro e apressado exame possa levar a pensar, significam, na realidade, um aproveitamento insuficiente da terra), encontra-se em estado de improdutividade, de abandono. sem fruto.

    Povoando dramaticamente esta paisagem e esta realidade social e económica, vagando entre o sonho e o de
    sespero, existem 4 800 000 famílias de rurais sem terras. A terra está ali, diante dos olhos e dos braços, uma imensa metade de um país imenso, mas aquela gente (quantas pessoas ao todo? 15 milhões? mais ainda?) não pode lá entrar para trabalhar, para viver com a dignidade simples que só o trabalho pode conferir, porque os voracíssimos descendentes daqueles homens que primeiro haviam dito: “Esta terra é minha”, e encontraram semelhantes seus bastante ingénuos para acreditar que era suficiente tê-lo dito, esses rodearam a terra de leis que os protegem, de polícias que os guardam, de governos que os representam e defendem, de pistoleiros pagos para matar. Os 19 mortos de Eldorado dos Carajás e os 10 de Corumbiara foram apenas a última gota de sangue do longo calvário que tem sido a perseguição sofrida pelos trabalhadores do campo, uma perseguição contínua, sistemática, desapiedada, que, só entre 1964 e 1995, causou 1 635 vítimas mortais, cobrindo de luto a miséria dos camponeses de todos os estados do Brasil. com mais evidência para Bahia, Maranhão. Mato Grosso, Pará e Pernambuco, que contam, só eles, mais de mil assassinados.

    E a Reforma Agrária, a reforma da terra brasileira aproveitável, em laboriosa e acidentada gestação, alternando as esperanças e os desânimos, desde que a Constituição de 1946, na seqüência do movimento de redemocratização que varreu o Brasil depois da Segunda Guerra Mundial, acolheu o preceito do interesse social como fundamento para a desapropriação de terras? Em que ponto se encontra hoje essa maravilha humanitária que haveria de assombrar o mundo, essa obra de taumaturgos tantas vezes prometida, essa bandeira de eleições, essa negaça de votos, esse engano de desesperados? Sem ir mais longe que as quatro últimas presidências da República, será suficiente relembrar que o presidente José Sarney prometeu assentar 1.400.000 famílias de trabalhadores rurais e que, decorridos os cinco anos do seu mandato, nem sequer 140.000 tinham sido instaladas; será suficiente recordar que o presidente Fernando Collor de Mello fez a promessa de assentar 500.000 famílias, e nem uma só o foi; será suficiente lembrar que o presidente Itamar Franco garantiu que faria assentar 100.000 famílias, e só ficou por 20.000; será suficiente dizer, enfim, que o actual presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, estabeleceu que a Reforma Agrária irá contemplar 280.000 famílias em quatro anos, o que significará, se tão modesto objectivo for cumprido e o mesmo programa se repetir no futuro, que irão ser necessários, segundo uma operação aritmética elementar, setenta anos para assentar os quase 5.000.000 de famílias de trabalhadores rurais que precisam de terra e não a têm, terra que para eles é condição de vida, vida que já não poderá esperar mais. Entretanto, a polícia absolve-se a si mesma e condena aqueles a quem assassinou.

    O Cristo do Corcovado desapareceu, levou-o Deus quando se retirou para a eternidade, porque não tinha servido de nada pô-lo ali. Agora, no lugar dele, fala-se em colocar quatro enormes painéis virados às quatro direcções do Brasil e do mundo, e todos, em grandes letras, dizendo o mesmo: UM DIREITO QUE RESPEITE, UMA JUSTIÇA QUE CUMPRA.


    JOSÉ SARAMAGO, 1997

    Fonte: MST
    Fotos: Sebastião Salgado

    sexta-feira, 19 de março de 2010

    Dia de São José

    Hoje, 19 de março, é dia de São José. Na tradição camponesa do Nordeste semi-árido, o dia é de espera por chuva, que quando ocorre, sinalizaria que haverá um bom “inverno” (quadra chuvosa) e muita colheita...


    A foto acima é de Sebastião Salgado. Retrata uma camponesa na colheita do algodão mocó, com uma árvore de mandacaru (cactácea típica do nordeste brasileiro) ao fundo. A fotografia faz parte da coletânea “Terra".