quarta-feira, 15 de junho de 2016

A morte de Konibu e o crime de genocídio de Romero Jucá

Enquanto era presidente da Funai, Jucá entregou as terras dos índios Akuntsu a seus algozes, diz sertanista


Parte do sofrimento de Konibu deve-se a um ato de Jucá na presidência da Funai: a destinação da terra onde os indígenas viviam para fazendeiros

Por Felipe Milanez*

Na última quinta-feira, 26 de maio, faleceu em Rondônia o indígena Konibu, o velho líder e xamã do povo Akuntsu. Sobrevivente de um genocídio, ele já estava bastante debilitado por um câncer e problemas cardíacos, e tinha em torno de 85 anos., Morreu em paz, deitado na rede dentro da maloca onde viva, auxiliado por agentes de saúde e pelo sertanista da Funai, Altair Algayer.
Se a morte foi tranquila, no entanto, Konibu sofreu muito em vida. E parte desse sofrimento se deve a um  ato político de Romero Jucá enquanto era presidente da Funai: a destinação da terra onde os indígenas vivam para fazendeiros.
Os Akuntsu, seus vizinhos Kanoê e o “Índio do Buraco” são remanescentes de três povos que sofreram um genocídio de 1985 até os últimos ataques documentados em 1995.
O ex-ministro do Planejamento teve participação direta nesse processo enquanto era presidente da Funai (1986-1988): foi ele quem desinterditou a área e a destinou a fazendeiros que cometeram os crimes.


Resolução de Romero Jucá em 1986, publicada no Diário Oficial
Por isso, a morte de Konibu e a tragédia de seu povo trouxeram à tona uma grave questão atual, com Jucá e as articulações políticas contra os direitos indígenas: o governo interino ameaça rever a demarcação das terras indígenas feitas no governo Dilma, exatamente o que Jucá fez em 1986 com os Akuntsu e que levou ao genocídio.
Em  manifestação recente, a ONU denunciou que estes retrocessos podem implicar em “riscos de etnocídios”. A análise do caso dos Akuntsu revela exatamente o que aconteceu nos anos 1980, e pode novamente se repetir. Retirar o status de proteção de uma área ocupada por indígenas e destiná-la a ruralistas pode levar a um genocídio, como o caso dos Akuntsu, o qual Konibu e seu povo foram vítimas.
O caso a participação de Jucá no processo de genocídio dos Akuntsu não foi reportado no relatório da Comissão Nacional da Verdade, mas consta no livro Memórias Sertanistas: Cem Anos de Indigenismo no Brasil (Sesc, 2015). A questão da participação de Romero Jucá no genocídio, ao desinterditar a área, também foi omitida da  notícia veiculada pela assessoria da Funai na semana passada, ao divulgar a morte de Konibu.
O genocídio Akuntsu
Em 1985, o sertanista da Funai Marcelo dos Santos trabalhava no sul de Rondônia com os Nambiquara, e foi a campo verificar a presença indígena em uma área demandada pela Fazenda Guaratira, que negociava créditos do Banco da Amazônia e pediam à Funai uma “certidão negativa da presença indígena”.
Ao visitar a fazenda, Santos foi informado por trabalhadores de que teria ocorrido um massacre em uma fazenda vizinha: “Olha, não pode falar, não, porque este lugar aqui é muito perigoso. Mas eu vou avisar para você. Aqui, nessa fazenda, vocês não vão encontrar índio, não. Mas se vocês forem lá na Fazenda Yvypytã, ‘aconteceu’ alguma coisa. Teve uma confusão lá, porque acuaram os índios e eles correram” (Memórias Sertanisas, página 332).
A Yvypytã era de propriedade de Antonio José Rossi Junqueira Vilela, acusado de comandar um massacre de garimpeiros dentro dessa mesma fazenda, em 1983 (Inquérito Policial 114/83, na delegacia de Vilhena)
Ao ser informado da denúncia, Santos foi junto de um grupo de índios Nambikwara e do documentarista Vincent Carelli procurar vestígios e encontrou uma pequena aldeia com quatro casas destruídas e cápsulas de revolver. Essas cenas aparecem no filme Corumbiara, de Vincent Carelli, que está disponível na internet.
Com as evidências da presença indígena, Santos negou a certidão e pediu a interdição da área. A Funai enviou o sertanista Sydney Possuelo para comprovar as alegações, e o então Presidente da Funai Apoena Meireles assinou a Portaria nº 2.030/E/1986, publicada em 11 de abril de 1986, interditando 63.900 hectares, com base no levantamento de Santos, com o nome de “Área Indígena Omere”.
“Eu desenhei o mapa da interdição com os poucos conhecimentos que eu tinha na época que eu estava lá dentro da área. Mas não tinha andado no mato para saber porque os pistoleiros não permitiam e nos ameaçavam”, relata Marcelo dos Santos em entrevista.
A interdição envolvia três fazendas na época, e os sertanistas podiam entrar na área para investigar os crimes, o que intimidava os fazendeiros a desmatarem e, possivelmente, praticarem novos ataques.
Ficavam também suspensos os financiamentos e por isso a Yvypytã entrou com uma ação judicial e conseguiu uma liminar para desinterditar a área. Em recurso da Funai ao Tribunal Regional Federal, o ministro Lauro Leitão cassou a liminar para manter a área sob interdição, ante “manifesta a possibilidade de grave lesão”, a “iminente possibilidade do aniquilamento físico da população tribal remanescente”, em decisão datada de 21 de maio de 1986.
Com isso, permanecia válida a portaria da Funai, protegida também por uma decisão judicial de segunda instância. Acontece que nesse mesmo mês de maio de 1986 Romero Jucá assumiu a presidência da Funai.
Não foram poucos os crimes cometidos por Jucá enquanto esteve na presidência da Funai, como escreveram recentemente Pádua Fernandes , em artigo no seu blog, e  João Fellet, na BBC, e a participação no genocídio dos Akuntsu vem a se somar a uma série de violência contra os povos indígenas.
Em 12 dezembro de 1986, Romero Jucá revogou a portaria assinada por Apoena Meireles e assinou uma “nova” portaria com o número 1.813 para “desinterditar” a área e revogar a portaria 2030/E, assinada pelo seu antecessor, Apoena Meireles. Ou seja: fez um novo ato administrativo, já que judicialmente a terra estava garantida aos índios, para transferir a posse aos fazendeiros. Há um temor dos povos indígenas que uma estratégia parecida seja utilizada pelo governo interino de Temer.
A decorrência desse ato de Jucá resultou em novas invasões no território indígena, o desmatamento da área, novos ataques aos Akuntsu, aos Kanoe e, sobretudo, também ao “índio do Buraco”, um outro povo indígena que tem agora apenas um único sobrevivente. Sertanistas da Funai, e Marcelo dos Santos especificamente, passaram a ser proibidos de entrar na área. A participação de Jucá nesse processo de genocídio não foi incluída no relatório da Comissão Nacional da Verdade, que apresenta os envolvimentos de Jucá na invasão de garimpeiros na TI Yanomami.
O contato e o convívio com os sobreviventes
Apenas nos anos 1990, quando Sydney Possuelo assume a presidência da Funai em 1991, que Santos consegue autorização para voltar a investigar o genocídio do rio Omere, em Corumbiara. Nesse período, Altair Algayer, que migrou com sua família do sul para Rondônia, se junta à equipe da Funai.
Em 1995, um mês depois do massacre de camponeses em Corumbiara, Santos, Algayer e Carelli encontram dois irmãos Kanoe, Purá e Tiramantu, em uma pequena clareira que viram numa imagem de satélite e, em campo, descobriram ser a aldeia dos Kanoe. As imagens de Vincent Carelli foram parar no Fantástico e serviram para a Funai publicar uma nova interdição da área e reiniciar o processo de demarcação.



Um mês depois do contato com os Kanoe, os sertanistas foram guiados por eles até os Akuntsu. E, no ano seguinte, encontraram vestígios de um novo ataque ao povo do “índio do Buraco”, descobrindo em meio a um desmatamento feito durante o período de chuvas, o que não é comum, casas queimadas, capsulas de revolver, e diversos vestígios materiais de uma pequena aldeia. Isto prova que o ataque aos indígenas, ao menos desde o massacre relatado por trabalhadores da fazenda em 1985, foi constante até 1996.
Durante esse processo de contato com os indígenas, a Funai contou com apoio de uma rede de colaboradores e movimento social, como o cinegrafista Vincent Carelli e sua esposa, a antropóloga Virgínia Valadão, indigenistas da Opan, como Inês Hargreaves, e da Kanindé, como Pedro Rodrigues, Rogério Vargas, Ivaneide Cardoso, e indigenistas do CIMI. A Terra Indígena Rio Omerê foi homologada em 2006.
Morte de Konibu
Os Akuntsu eram sete indígenas em 1995. Konibu, o mais velho, com uma esposa e três filhas, e uma senhora mais velha, chamada Ururu e um filho adotivo, Pupak. Uma das filhas morreu em 2000 quando uma árvore caiu sobre a casa da família. Em 2009, faleceu Ururu.
Após uma epidemia de doenças respiratórias, idas e vindas em hospitais, e uma profunda depressão sobre os índios, Ururu deitou-se na rede e se deixou morrer, sem se alimentar por uma semana. Escrevi sobre esta triste morte na revista RollingStone, e pode ser lido aqui. Algayer acompanhou todos os momentos, e ajudou os indígenas a preparar o funeral.
Novamente, com Konibu, Algayer também assistiu de perto os últimos momentos. Ele diz que as duas filhas e a viúva estão “desamparadas, desorientadas”, assim como Pupak, filho adotivo de Ururu, que continua bastante impactado. “Desde a morte da Ururu, ele ficou muito abatido, sozinho. Acompanhava o Konibu no dia a dia, ajudando na caça. Mas está bastante isolado e solitário”.
O mais sofrido, conta ele, é a parte espiritual. “O konibu era o último xamã, e elas não sabem fazer os trabalhos rituais. Isso cria uma angústia muito profunda, muita tristeza. Elas temem que o espírito dele não esteja bem. Elas não têm mais segurança espiritual, e nem física. É muito triste.”
No dia do funeral, o três remanescentes Kanoe, o indígena Purá, sua irmã Txinamanty, mãe de Bakwa, já estava na base. Txinamanty é xamã, assim como era Konibu, mas são de povos diferentes e possuem e cosmovisões distintas.
“No outro dia da morte, a gente percebeu que ela passou a noite inteira cheirando rapé. Ela fez um ritual sozinha na aldeia dela. E uns dias antes da morte ela vinha e fazia rituais de cura para ajudar o Konibu, que estava em uma situação difícil, na rede.”
Konibu estava na rede praticamente sem conseguir se mexer e convalescendo desde janeiro. Nos últimos dias, ele precisava de ajuda para se levantar e para sentar. “Não tinha mais força”, relata Algayer.
A tragédia de um fim do genocídio é um drama existencial profundo e perturbador, que Algayer enfrenta com um humanismo extraordinário.
Conforme depoimento de Marcelo dos Santos, às paginas 314 do livro Memórias Sertanistas: “Saiu o Apoena e entrou o Romero Jucá. A primeira providência do Romero Jucá: me proibir de entrar na área. Fui proibido de sair dos Nambikwara e entrar na área do igarapé Omerê. E, junto com a minha proibição, ele desinterditou a área.”
E relata: “Foi a primeira manifestação da Justiça sobre o caso. Assim mesmo, o senhor Romero Jucá entregou as terras dos índios isolados aos algozes.”
Em um artigo que assino junto do antropólogo Glenn Shepard, na revista Tipiti, discute essa trágica situação de povos remanescentes de genocídios recentes, as contradições da Funai com relação as demarcações, e a dedicação e o humanismos dos sertanistas, como de Altair Algayer. O texto pode ser acessado aqui.
*Fonte: Carta Capital- Blog do Felipe Milanez
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