Não por caso, a ditadura planejou uma faixa de colonização destinada a pequenos agricultores migrantes ao longo de 10 quilômetros de cada lado de rodovias como a Transamazônica e a BR-163 (Cuiabá-Santarém). A massa camponesa que demandava terra no Sul, Sudeste e Nordeste não viriam a Reforma Agrária prometida ocorrer nos intocáveis latifúndios locais. Ao mesmo tempo, os camponeses da Amazônia foram desconsiderados como seres humanos e quando muito, teriam que se “enquadrar” em lotes de 100 hectares da colonização ou ainda em áreas menores, de uma dita “regularização fundiária”, moldando-se a um modelo produtivo que não era o seu.
A função de toda essa gente nesse processo era servir de mão-de-obra barata para projetos agropecuários, em áreas licitadas atrás das faixas de colonização, em lotes de até 3.000hectares, limite imposto pela Constituição de 1967. Em uma dessas áreas, no lote de número 55, na Gleba Bacajá em Anapú, seria assassinada a freira e missionária Dorothy Stang em 2005. O trabalho também era necessário em áreas maiores griladas e nos projetos de abertura de rodovias, construção de hidrelétricas e outras obras de infra-estrutura.
Percorrendo a Transamazônica e a BR-163, em municípios como Pacajá, Brasil Novo, Uruará, Novo Progresso, Medicilândia, Ruropólis, Castelo dos Sonhos e tantos outros, qualquer brasileiro que se disponha a conversar com os moradores destas cidades perceberá um misto de dor e ilegalidade que formaram essas localidades. São histórias terríveis como de trabalhadores de um projeto sucro-alcooleiro que tiveram as línguas cortadas durante uma greve contra a precariedade do trabalho; mulheres que foram espancadas por milicianos de grileiros até o aborto; índios que em poucas semanas tiveram toda a sua população reduzida por doenças trazidas pela “frente pioneira”.
Hoje, ao se falar do desmatamento, poucos associam esses fatos. Vê-se as conseqüências da penetração do grande capital na região como um simples “problema das árvores” e não do mosaico humano que hoje forma a Amazônia.
Mas, ignorar o passado e não vê-lo no presente não é um simples problema de desconhecimento da história ou da memória do Brasil sobre a região Norte. Se o passado não existe, ele também não serve de lição ao futuro. Parece ser essa a lógica que prevalece na definição das políticas para a Amazônia na atualidade.
Essa ignorância é na verdade a cumplicidade com o maior saque que as florestas e os povos da Amazônia estão passando. Somente no Pará, há em curso dezenas de grandes projetos como hidrelétricas, rodovias, mineração, concessão florestal e privatização de terras.
Os governos petistas de Lula e Ana Júlia Carepa põem em curso as engrenagens para um cenário tenebroso num futuro bem próximo. Com discursos, documentos e propaganda de “ordenamento territorial”, “sustentabilidade” e “governança” promovem a maior entrega das águas, subsolo, terras e florestas que o Brasil já viu.
No que se refere à questão agrária, poucos sabem, mas quase toda a Amazônia brasileira é formada por terras públicas. São áreas ainda devolutas e uma maior parte já arrecadada pelo Incra ou pelos Institutos estaduais de terras. Algumas dessas áreas estão destinadas para Terras Indígenas, Unidades de Conservação e Projetos de Assentamentos, situação que não impede a apropriação privada por grileiros, madeireiros e agropecuaristas.
Não raro, Unidades de Conservação foram criadas para instalação de grandes empreendimentos de mineradoras ou para exploração florestal, desconsiderando as populações que moram nessas áreas. Hoje, outras unidades de conservação que beneficiariam essas populações (caso das Reservas Extrativistas) são engavetadas na mesa da Ministra Dilma Russef para não “atrapalhar” a construção de hidroelétricas e a instalação do grande capital.
A avalanche de assentamentos sem assentados no Oeste do Pará, longe de representar uma distribuição massiva de terras e a destinação do território aos povos das florestas, foi apenas o preâmbulo de uma afinada orquestra. Área destinada é área passível de instalação legal de grandes empreendimentos, mesmo que essa legalidade seja apenas de verniz.
Põe-se em curso no momento a “regularização fundiária” de grandes áreas no Pará. O Incra poderá regularizar ocupações em suas terras em até 1.500 hectares. Em detrimento disto, o reconhecimento de comunidades quilomboloas, o reassentamento de não-indígenas e o reconhecimento de populações tradicionais de Unidades de Conservação já criadas ficarão em segundo plano. Por outro lado, o Iterpa promete em documento público “regularizar” até o limite constitucional de 2.500 hectares.
Escritórios de grilagem auto-denominados “corretoras” correm contra o tempo para ajustar em campo novos limites de áreas griladas. Áreas de 500hectares são travestidas para 1.125 ou 1.124,90, para não deixar margem para outras interpretações.
Quem olhar para o que ocorreu na região nos setenta e hoje vê o que ocorre poderia pensar que a história se repete. Se a repetição histórica é uma fraude, o que ocorre na região nada mais é do que isso. Com uma diferença: os militares mentiam na suas intenções, mas não faziam delas nenhum discurso bonito como “plantar um bilhão de árvores”.
Os indígenas em Roraima e da região do Xingu parecem que acordaram e estão numa luta ferrenha de defesa de seus territórios. A grande mídia, parte desse processo de entrega, só aborda essas lutas para criminalizá-las.
Está passando da hora dos brasileiros não-amazônidas acordarem para o quem vem acontecendo na região. Há pouco menos de dois anos por aqui, estou impressionado com o profundo silêncio nacional com fatos tão graves que a cada dia se sucedem.
Cândido Cunha, Eng. Agrônomo, Santarém, Pará - com especial agradecimento aos autores do livro Amazônia Revelada - Os descaminhos ao longo da BR-163.