domingo, 22 de dezembro de 2013

25 anos depois, Chico Mendes vive mais indignado com o capitalismo verde

Nas celebrações para lembrar o aniversário de sua morte, sindicalista é destituído de seu conteúdo político revolucionário e transformado em pragmático “ambientalista”

Por Elder Andrade de Paula*

“Quando te vi com essa camiseta pensei que era mais um propagandista do governo do Acre”, disse-me um dos participantes do II Congresso da Comissão Pastoral da Terra (CPT) realizado em Goiás no ano de 2005. O comentário me deixou perplexo porque a camiseta em questão era branca e tinha estampada, em sua frente, uma imagem com o rosto de Chico Mendes, sobreposta com a chamada: “Chico Mendes Vive” e, logo a seguir, o texto escrito por ele no ano de seu assassinato “Atenção jovem do futuro, 6 de Setembro do ano de 2120, aniversário ou centenário da Revolução Socialista Mundial, que unificou todos os povos do planeta num só ideal e num só pensamento de unidade socialista que pôs fim a todos os inimigos da nova sociedade. Aqui fica somente a lembrança de um triste passado de dor, sofrimento e morte.Desculpem… Eu estava sonhando quando escrevi estes acontecimentos; que eu mesmo não verei mas tenho o prazer de ter sonhado”.

Minha perplexidade deveu-se ao fato de não estar estampado na dita camiseta nenhuma logomarca identificando o governo do Acre. Ademais, existia outro detalhe fundamental: não havia e não há no vocabulário e nas ações do governo do Acre absolutamente nada que tenha proximidade com esse sonho de Chico Mendes. Ao contrário, o Chico Mendes evocado pelo governo acriano foi destituído de seu conteúdo político revolucionário e transformado em um pragmático “ambientalista”, em consonância com todo o complexo de organizações da sociedade civil articulado em torno da ideologia do desenvolvimento sustentável. Às vezes, também o transformam em vidente, quando usam seu nome para justificar as perversas políticas voltadas para o aprofundamento da mercantilização da natureza. Dizem, dentre outras barbaridades, que Chico Mendes seria a favor do manejo florestal madeireiro, dos famigerados Pagamentos por Serviços Ambientais – PSA, quando sabemos que essas proposições emergiram após o seu assassinato.


Enfim, o fato que relatamos ilustra com muito vigor o monumental poder da imagem e a sofisticação crescente com que tal poder é manipulado. O Governo do Acre tem usado de forma primorosa esse recurso, logrando “colar” com maestria a imagem de Chico Mendes ao seu projeto político, afirmando que estaria realizando os “seus ideais” – como mostra Maria de Jesus Morais no seu artigo “Usos e abusos da imagem de Chico Mendes na legitimação da “economia verde”, no Do$iê Acre: O Acre que os mercadores da natureza escondem, documento apresentado em 2012 durante a Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro.

Em imagem usada na campanha governamental “25 anos Chico Mendes vive mais” aparecem o governador Tião Viana e sua esposa Marluce ao lado das estátuas de Chico Mendes e seu filho Sandino, na Praça Povos da Floresta, em Rio Branco (AC). Foto: Sérgio Vale/Secom
Imagem e poder
Nesse sentido, a manipulação da imagem de Chico Mendes atua como um antídoto contra a memória de Francisco Alves Mendes Filho. Enquanto a memória revela obstinado desejo de transformação de uma realidade marcada pela exploração, injustiça e destruição, a imagem manipulada volta-se para o ocultamento dessa realidade. Mais do que isso, os novos mapas com ilustrações do “Zoneamento Econômico Ecológico”, que não passam de adaptações jurídicas e institucionais inebriadas com o vocabulário subjacente à ideologia do desenvolvimento sustentável, são usados para apresentar o Acre como “modelo de economia verde” a ser replicado em outras regiões do mundo.

Essa separação e/ou adaptação entre imagem e seus significados tem sido usada também em “Nuestra América” desde os primórdios da colonização europeia, como lembra Serge Gruzinski em seu livro “A guerra das imagens – de Cristóvão Colombo a ‘Blade Runner’ (1492-2019)”. De acordo com ele, desde que Colombo desembarcou no novo mundo a imagem foi utilizada para fins de dominação. Sem demora, diz o referido autor, os recém-chegados se perguntaram sobre a natureza das imagens que possuíam os indígenas. “Prontamente, a imagem constituiu um instrumento de referência, e logo de aculturação e de domínio, quando a igreja resolveu cristianizar os índios desde a Flórida até a terra do fogo. A colonização europeia aprisionou o continente em uma armadilha de imagens que não deixou de ampliar-se, desenvolver-se e modificar-se ao ritmo dos estilos, das políticas, das reações e oposições encontrados”, escreve Gruzinski.

É precisamente nesta perspectiva analítica que interpretamos a intencionalidade dessa separação entre “Chico e Francisco”. Isto é, apropriar-se de uma imagem e destituí-la de seu sentido original para transformá-la em poderoso instrumento de legitimação do poder. Obviamente, ela necessita manter alguns nexos com uma memória “devidamente adaptada” aos fins políticos de cada momento, conforme explicitado anteriormente.

No decorrer das celebrações dos “vinte anos sem Chico Mendes”, em 2008, mostramos os usos e abusos da imagem desse líder sindical no artigo “Movimentos sociais na Amazônia brasileira: vinte anos sem Chico Mendes. Destacamos, entre outros pontos, que as proposições do Movimento Sindical no “tempo de Chico Mendes” foram apropriadas e transmutadas na sua negação. Portanto, não estava em curso uma suposta continuidade e, sim, uma ruptura com esse legado. Agora, faremos um exercício oposto: realçar os traços de continuidade no “estilo de desenvolvimento” em curso no Acre.

Legado
Em uma de suas últimas entrevistas , registrada no livro “O Testamento do Homem da Floresta Chico Mendes por ele mesmo”, de Cândido Grzibowski, ele disse o seguinte:

“Em princípio teve alguns momentos que houve um avanço considerável do governo na questão ecológica, no Conselho Nacional dos Seringueiros, na luta dos seringueiros. Mas, em seguida, nós começamos a desconfiar e começamos a descobrir que o governo do Estado estava fazendo um discurso ecológico para justificar a aprovação de seus projetos nos bancos internacionais ou junto às organizações internacionais (…) Não dá pra se entender que o governo seja ecológico, que defenda a ecologia, que seja contra o desmatamento, e que ao mesmo tempo esse mesmo governo mande a polícia armada para proteger o desmatamento (…) Até o momento, a justiça sempre está do lado do maior. Um dos problemas, um dos pontos mais fracos com que nos defrontamos é a própria justiça. Muitas vezes recorremos ao apoio da justiça e a justiça, inclusive este ano foi claro, ficou do lado dos latifundiários (…)”

Imagem de sindicalista foi projetada no Palácio Rio Branco durante as comemorações. Foto: Victor Augusto/Secom 

É justamente aí, no governo do PMDB de Flaviano Melo (1987-90), que podem ser encontrados os traços que teriam continuidade e que caracterizam o “fazer” do governo acriano desde 1999. Ao analisarmos atualmente os inúmeros conflitos pela posse da terra e aqueles relativos à expansão da exploração madeireira e pecuária no estado, vemos com clareza a reiteração daquele cenário político descrito por Chico Mendes em 1988. A diferença fundamental é que, hoje, o “ovo da serpente” eclodiu e o Estado está mais subordinado aos ditames dos financiamentos externos e à lógica do capitalismo verde (interpretado como resultante das modificações operadas no capitalismo no sentido de promover um movimento simultâneo de adaptação à nova divisão internacional do trabalho, ao reordenamento de natureza geopolítica, às reconfigurações nas relações Estado-Mercado e à assimilação do ambientalismo no processo de acumulação global que o presidem).

Os resultados de tudo isso apareceram bem sintetizados no já citado Do$iê Acre. No referido documento destacam-se entre outros: 1) a elevada concentração da propriedade fundiária e da renda; a permanência dos conflitos pela posse da terra e o surgimento de outra ordem de conflitos relacionados com o processo de aprofundamento da mercantilização da natureza; interdição das demarcações de Terras Indígenas; 2) expansão das atividades produtivas consideradas mais predatórias como a pecuária extensiva de corte e exploração madeireira; 3) autoritarismo político e cooptação das representações dos trabalhadores, como o sindicalismo rural, com honrosa exceção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STTR) de Xapuri.

Sendo assim, o que prevaleceu não foi o legado de Chico Mendes mas, sim, o de seus inimigos. A continuidade passível de constatação é aquela relacionada com o prolongamento da espoliação sob a batuta de um poder oligárquico que necessita ser ocultado para mostrar a imagem de um “Acre moderno”. Os “usos e abusos” da imagem de Chico Mendes (como diz Maria de Jesus Morais) são fundamentais neste sentido. Neste ano de 2013, o slogan usado pelo governo acriano para “comemorar” os 25 anos de assassinato de Chico Mendes foi: “25 anos, Chico Mendes vive mais” (texto e imagens sobre o assunto chegaram a ser publicados na página da Agência de Notícias do Governo do Acre, mas o link http://www.agencia.ac.gov.br/index.php/chico-mendes-25-anos não está mais disponível).

Por esta razão, ao invés de usar a dita expressão parece mais apropriado dizer que Chico Mendes vive mais indignado com o capitalismo verde.

* Elder Andrade de Paula é professor associado do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre. Texto publicado originalmente no sítio da Repórte Brasil

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