terça-feira, 26 de abril de 2016

Dois cafés e a conta com Jairo Saw

Jairo Saw: "Não queremos ser peça de museu, e sim um povo vivo" - Mauro Ventura / O GLOBO
Liderança indígena fala de como os Munduruku viraram a principal resistência aos planos do governo de construir hidrelétricas

Na terça-feira passada, Dia do Índio, Jairo Saw tinha grandes motivos para comemorar: o relatório da Funai sobre a demarcação de sua terra Sawré Muybu foi publicado no Diário Oficial após três anos de espera. Se em 90 dias não houver contraditório, o decreto será homologado pela presidência. “É histórico”, diz ele, de 47 anos, uma das lideranças do povo Munduruku, que veio ao Rio pela primeira vez, para a Semana Cultural Indígena. A razão da celebração é que agora vai ficar muito mais complicado fazer hidrelétricas na região. Pelos planos do governo, serão construídas 43 grandes barragens no complexo hidrelétrico do Tapajós, onde vivem 12 mil Munduruku. “Estão previstas cinco hidrelétricas, que alagarão uma área de floresta igual à da cidade de São Paulo”, diz ele, que mora numa aldeia urbana, Praia do Mangue, no município de Itaituba, no médio Tapajós, no Pará. O leilão da usina São Luiz do Tapajós, obra prioritária do governo, foi anunciado para o segundo semestre, mas não sairá, se depender dos Munduruku, um povo estrategista e politizado. Em dezembro, eles receberam o prêmio Equador, da ONU, pela luta para proteger seu território. O esforço também virou HQ online, "O jabuti resiste", do Greenpeace, que apoia os Munduruku.

REVISTA O GLOBO: Por que a luta contra as hidrelétricas?
JAIRO SAW: Somos tratados como empecilho para o desenvolvimento econômico do país. Mas não somos contra o desenvolvimento. Queremos é que nossos direitos sejam respeitados. As barragens trazem progresso do ponto de vista do capital, mas existe um povo que vive ali desde sempre e que vai perder sua ciência, sua educação, sua sabedoria, seu conhecimento, sua tradição, seus locais sagrados, o registro dos antepassados. É a cultura e a memória de um povo que se perdem. É uma forma de matar a gente sem precisar de armas. E o rio nos dá vida, é fonte de alimentação e meio de transporte. Sofreremos consequências culturais, econômicas, ambientais, psicológicas e espirituais.

E que consequências há para a sociedade em geral?
Não é só o índio que vai sofrer os impactos. O pariwat (não índio) também. O agronegócio, por exemplo, vê a floresta como terra improdutiva, mas ela é fundamental para o equilíbrio ambiental, e nós nos preocupamos com as mudanças climáticas. Prestamos um serviço ao planeta. Ao nos destruir vocês também estão se destruindo. Ao proteger com unhas e dentes o patrimônio que nossos antepassados nos deixaram não estamos apenas nos defendendo. A natureza tem leis, se as violarmos ela se vinga. A barragem vai alagar terras indígenas, alterar o curso do rio, prejudicar os peixes, pode causar a extinção de espécies. Ninguém melhor que nós para cuidar da Amazônia. Quem diz “é muita terra para pouco índio” não leva em conta que o Brasil era território indígena. Lutamos por um pedaço do que era nosso. E a terra não é grande: estamos sempre nos deslocando. Caçamos, coletamos frutos, frutas e raízes, fazemos rituais. Andamos para manter a floresta viva.

Mas as usinas não são prioritárias para gerar energia?
Há alternativas, como energia eólica, solar, biomassa. E sabemos que não é só uma usina que vai ser construída. Ela é pretexto para entrar na floresta e abrir caminho para mineração. É uma porta aberta para outros “progressos”: garimpeiros, madeireiros, pecuaristas, o crescimento das cidades, com aumento de criminalidade, prostituição, drogas, alcoolismo, problemas de saúde, de saneamento. Basta ver a Usina de Belo Monte. Altamira pulou de 90 mil para 150 mil moradores.

Vocês estão nessa luta há muito tempo, não?
Somos um povo guerreiro, está no nosso sangue. Éramos temidos. Atacávamos de surpresa e em grande quantidade. Nossos troféus eram as cabeças dos nossos inimigos, que simbolizavam poder. Agora, tivemos que aprender duas novas palavras que não existem na nossa língua: preocupação e barragem. Treinamos nossas mulheres para serem cinegrafistas do movimento de resistência dos Munduruku. Fizemos um manual, em português e munduruku, para ensinar como usar a tecnologia, como celular, para denunciar. Tem recomendações como “proteja o cartão de memória após filmar”, “se estiver gravando algo importante não pare de gravar! A imagem corrida tem mais valor como prova”. Quem nos apoia na estratégia de comunicação é a ONG Uma Gota no Oceano. Nunca desistimos. Quando um povo desaparece só é visto no museu. Não queremos ser peça de museu, e sim um povo vivo.

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