sexta-feira, 11 de abril de 2008

Transposição inaugura “guerra pela água no Brasil”, diz cientista

Por: NAJLA PASSOS

“A obra de transposição do Rio São Francisco inaugura a guerra pela água no Brasil”, afirma o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, João Abner, doutor em Hidrologia e Irrigação, ao deixar claro, em entrevista ao Informandes Online, que, pelo menos até o momento, quem está vencendo a batalha é o capital financeiro internacional e a elite brasileira que lhe dá sustentação. Às véspera da manifestação contra a mais polêmica obra do governo Lula, marcada para o dia 1º de abril, em São Paulo, o cientista argumenta porque a sociedade brasileira tem que dizer NÃO À TRANSPOSIÇÃO!

INFORMANDES - O que propõe, de fato, o projeto do governo federal de transposição do Rio São Francisco?
JOÃO ABNER - É um projeto tradicional de ampliação dos estoques de água da região, dentro da lógica capitalista de “aumentar o bolo” com a promessa de depois dividir, que nunca chega. Está dentro da velha política hidráulica praticada desde o Império, responsável por criar, no nordeste brasileiro, o maior depósito de água em semi-árido do mundo. São 400 grandes açudes distribuídos por toda a região. Portanto, na prática, a transposição vai “chover no molhado”, já que a política hidráulica, desde o império, é construir açudes para estocar água, que acaba não chegando até a população que realmente precisa. São projetos inacabados, fora do contexto de desenvolvimento. É a velha história da obra como um fim em si mesmo.

INFORMANDES – E quais são os interesses que estão por trás da transposição?
JOÃO ABNER - Esse é um projeto capitalista para maximizar o acesso aos recursos financeiros do estado brasileiro que visa, na prática, à exportação da água do São Francisco, através de produtos do litoral do Ceará e Rio Grande do Norte, o que proporciona um custo mais baixo de transporte do que a exportação via outros portos. Entretanto, como a água vai chegar cinco vezes mais cara a esses produtores, o governo criou um sistema de subsídio cruzado, levando também a água do São Francisco para as populações dos grandes centros urbanos da região, que será quem, de fato, irá pagar o alto custo dessa água. Dessa forma, os produtores da região beneficiada poderão exportar água a um custo bem mais baixo do que hoje exportam os produtores do São Francisco. Entretanto, os produtores do São Francisco não terão esse subsídio e ainda terão que arcar com os altos custos de transporte, o que é absolutamente injusto. É por isso que dizemos que a transposição vai inaugurar a guerra pela água no Brasil, já que coloca grupos divergentes disputando o mesmo recurso natural. E é por isso, também que podemos afirmar, sem medo de errar que, mesmo dentro da lógica capitalista, o projeto é inviável economicamente: vai beneficiar as elites dos estados receptores em detrimento dos povos da bacia do São Francisco, obrigando a população urbana a arcar com os altos custos operacionais de captação da água. E o fato é que nós temos uma dívida enorme com os povos da bacia do São Francisco, que historicamente vem financiamento todo o desenvolvimento já conquistado pelo nordeste. Afinal, várias cidades da região foram inundadas e milhares de famílias expulsas de suas cassas pelas hidroelétricas do rio. O entorno do São Francisco era um oásis, e hoje é uma região extremamente problemática: pobre, violenta, cada vez mais refém do tráfico de drogas. A transposição do São Francisco é uma nova e grande ameaça.

INFORMANDES – Mas o que o governo afirma é que as populações dos grandes centros urbanos e mesmo a das comunidades difusas da região também precisam da água do São Francisco...
JOÃO ABNER - O nordeste não precisa de água de fora, mas sim de infra-estrutura para democratizar o acesso à água que já existe lá. O Ceará, por exemplo, tem condições de atender mais de quatro vezes suas demandas, inclusive as de irrigação. O Rio Grande do Norte tem condições de atender duas vezes e meia sua demanda. A Paraíba, uma vez e meia. É por isso que dizemos que a transposição é só um mote para que a elite se aproprie da água do São Francisco e a exporte, sustentada pelas populações das grandes cidades da região receptora da obra. Isso vai impor um custo abusivo à população urbana. A transposição é uma das maiores fraudes já vista no Brasil. Não tem nada a ver com a seca. Nenhuma cidade com dificuldades de abastecimento irá ter o problema resolvido, nenhum carro-pipa deixará de ser contratado na região.

INFORMANDES – Mas o problema da seca realmente existe....
JOÃO ABNER - O semi-arido brasileiro é um dos mais povoados do mundo. Existe uma população muito grande, de nível econômico muito baixo, sofrendo de fato as pressões do clima da região. São mais de mil municípios, em um total de um milhão de quilômetros quadrados, que concentram quase 20 milhões de pessoas. A problemática da seca é real e precisa ser enfrentada. Mas não podemos cair no discurso demagógico de achar que existe solução fácil, solução única. Aliás, esse é o procedimento padrão utilizado historicamente pela indústria da seca: primeiro amplia-se o problema e, depois, vende-se uma falsa solução. A transposição do São Francisco é um vírus que vem contaminando os governos deste país desde Itamar Franco, a partir do lobby do bloco que realmente manda neste país: as grandes empreiteiras, a indústria de cimento, de aço, o agronegócio... A obra tem dimensões faraônicas. A água que será tirada do São Francisco corresponde a mais de duas vezes o consumo da grande São Paulo. São 34 quilômetros de túneis. Apenas um deles terá 17 quilômetros contínuos, com sete metros de diâmetro. A barragem de Sobradinho, considerada o pulmão do Rio, transbordou em abril e, em novembro, já estava quase completamente seca, funcionando com apenas 10% da sua capacidade. E isso sem a transposição do rio e sem as demandas que a obra irá acarretar. É impossível que uma obra dessa envergadura não prejudique o São Francisco. Além disso, o projeto vai consumir R$ 1 bilhão dos recursos da união a cada ano. Este ano, será R$ 1,2 bilhão.

INFORMANDES - Existe manipulação nas informações apresentadas pelo governo relativas ao projeto?
JOÃO ABNER - A dificuldade maior que torna este debate um verdadeiro diálogo de surdos é o fato de que existem dois projetos completamente diferentes: o real e o divulgado pelo governo. Quem conhece o projeto real, certamente, é contrário a ele. Mas quem só tem acesso às informações do projeto que o governo divulga pode ficar na dúvida. Afinal, o que o governo diz é que o projeto vai tirar uma gota de água do Rio São Francisco para beneficiar 12 milhões de pessoas, gastando apenas o que já gasta normalmente com apenas duas secas do nordeste. Se fosse essa a verdade, quem seria contrário ao projeto?

INFORMANDES - E quais são, então, as alternativas para se combater os problemas reais gerados pela seca?
JOÃO ABNER - Primeiro, é preciso definir qual modelo de desenvolvimento queremos e, a partir daí, enfrentar os fatores que agravam o problema real da seca. Temos que enfrentar, prioritariamente, a indústria da seca, criando, por exemplo, um programa de erradicação de carros-pipa. O semi-árido precisa ter uma rede de abastecimento de água que possa chegar a todos os pontos, como é, por exemplo, a rede de energia elétrica. Essa rede de abastecimento pode utilizar, inclusive, os muitos açudes já construídos no nordeste, além de poços artesianos. O ideal é se investir em soluções locais que garantam pontos de abastecimento seguros a cada 5 quilômetros quadrados, ou seja, que garanta segurança hídrica à região. O Rio Grande do Norte, por exemplo, investiu R$ 250 milhões, com os recursos da privatização da companhia de energia do Estado, em um grande sistema adutor que abastece as populações urbanas e rurais do interior. O problema é que o custo foi muito alto e o programa só atende 50% da população do Estado. De qualquer forma, programas deste porte de abrangências regional custariam cerca de um terço do que custará a transposição. Outra questão importante é desvincular o desenvolvimento do nordeste da questão da água. A água tem que ser um fator de sustentabilidade sócio-econômica, mas não o ponto de partida para quaisquer programas de desenvolvimento da região. Até porque nenhum projeto inventado pelo homem conseguirá fazer chover. E mesmo se utilizássemos toda a água do São Francisco, não conseguiríamos irrigar nem 5% da região. Nós precisamos conviver com o semi-árido e encontrar alternativas econômicas que considerem as condições físicas do local. E essa convivência deverá pressupor a prioridade para o abastecimento para homens e animais. Os pólos hidro-agrícolas do semi-árido são exceções, e não regra. O Piauí, por exemplo, se tornou o 2º maior produtor de mel do país. Portanto, encontrou uma atividade deslocada da questão da água para promover desenvolvimento. Precisamos considerar também que a economia do semi-árido mudou bastante nos últimos anos. Está mais concentrada nas cidades, em indústrias de manufaturados e outras atividades afins. É por tudo isso que a transposição é uma obra tão atrasada: possui o olhar sobre o Brasil dos anos 50, e não de agora. Está centrada na lógica de uma economia fechada, planificada, que previa que cada região tinha que produzir tudo o que precisava consumir no seu próprio quintal. E isso não é realidade. O Brasil tem muita água em outras regiões, e essa água chega ao semi-árido nordestino por meio de produtos diversos. Na Amazônia, existem 300 hidrelétricas com o objetivo de gerar a energia que será enviada para os outros estados, inclusive os do nordeste. O Rio Grande do Norte, que é meu estado, recebe a energia da água do São Francisco, o arroz da água do Rio Grande do Sul, carne bovina do Mato Grosso, e assim por diante. A população, portanto, não vive só da água disponível especificamente nos limites do Estado. E é por isso, inclusive, que é outra falácia do governo dizer que a população da área que será beneficiada com a transposição sobrevive com menos de 1000 m³ de água por habitante ao ano, um índice ultrapassado da UNESCO. A água que existe no nordeste é suficiente para atender a todos, desde que siga a lógica do desenvolvimento sustentável.

INFORMANDES - A comunidade científica brasileira apóia a obra?
JOÃO ABNER - Essa é uma posição quase unânime no meio acadêmico e científico. A OAB Nacional tomou posição contrária, o Conselho Nacional de Biologia também. Mas há fóruns técnicos, como a Associação Brasileira de Recursos Hídricos – ABRH, da qual eu faço parte, que vem evitando colocar o assunto em discussão. Aliás, é assim que funciona o lobby do governo: como sabem que vão perder, se esquivam de colocar o assunto em debate nesses fóruns técnicos.


Fonte: ANDES-SN
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