sexta-feira, 11 de abril de 2008

Governo Lula respalda-se cada vez menos na classe trabalhadora organizada

por Valéria Nader*
08-Abr-2008


O Correio publica abaixo a segunda parte da entrevista que o sociólogo Ricardo Antunes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), concedeu ao Correio. Na primeira parte, publicada na edição de número 595, analisaram-se os aspectos nefastos da aprovação do projeto de lei 1.990/07 pelo Câmara Federal no dia 11 de março, reconhecendo legalmente as centrais sindicais como entidades gerais de representação dos trabalhadores.
Inserindo essa medida na lógica do governo Lula, Antunes não tem nenhuma complacência: em um processo de grandes avanços e pequenos recuos, o sociólogo destaca que o governo vem devastando a classe trabalhadora organizada, amenizando o caminho para o avanço do grande capital.
Confira abaixo.

Correio da Cidadania: Em sua última entrevista ao Correio, você mencionou que o governo Lula fala com os pobres muito bem, mas garante mesmo é a boa vida dos ricos - uma situação, no mínimo, capciosa, já que os governos burgueses não dialogam com os pobres. Que governo é esse?

Ricardo Antunes: Com o Lula é diferente mesmo, há uma espécie de semibonapartismo, onde os interesses de cima estão absolutamente preservados e garantidos, e a relação com as massas pode prescindir dos partidos. É nítida também uma migração da base social do governo Lula. Esse governo foi eleito com o apoio da classe trabalhadora organizada, sindical e politicamente. Hoje é cada vez menos ancorado na classe trabalhadora organizada e cada vez mais respaldado pelas parcelas mais empobrecidas da classe trabalhadora, que não têm emprego, trabalham sem organização sindical e política e vivem da esmola vergonhosa que o governo dá sob o nome de Bolsa Família, que hoje atinge 11 a 12 milhões de famílias, cerca de 60 milhões de pessoas.
É nesse pólo, por isso o traço semibonapartista, que o governo Lula investe pesadamente. Eu me lembro que, há 4, 5 anos atrás, o Lula esteve no ABC e disse que os operários de São Bernardo do Campo eram uma elite, pois pagavam o imposto de renda. Foi vaiado. É comum esse tipo de gafe quando Lula vai a um encontro operário organizado. Em compensação, nos rincões miseráveis, para uma família paupérrima, que não tem trabalho, alimento, produção, nada, receber 50, 60, 70 reais por mês permite a compra da ração mínima necessária para a sobrevida.

CC: Vivemos um momento muito esquizofrênico, não?

RA: É um momento difícil, porque, digamos assim, a tragédia brasileira é que o governo Lula deu certo para os de cima, para as classes dominantes. Quem ganha dinheiro com esse governo? O sistema financeiro, o capitalismo financeiro, os bancos e o grande capital produtivo; Vale do Rio Doce, Telefônica... O governo Lula é o reino desses grandes capitais produtivos e do sistema financeiro. E perdem com isso os assalariados médios, os de base. Claro, se você comparar com o governo Fernando Henrique, é evidente que o atual significa uma pequena melhora. Mas ninguém votou no Lula pensando num governo um pouquinho melhor que o de Fernando Henrique. Votou-se em Lula, pelo menos nos setores organizados, por uma mudança substancial, e isso passou longe.
Essa chance nós perdemos, o governo Lula jogou fora a chance de fazer algo como está sendo feito na Venezuela, onde começaram a desmontar as engrenagens da dominação burguesa, oligárquica; as mudanças que se fazem no Equador, que têm um certo respaldo político do governo; as lutas da Bolívia, onde indígenas, camponeses e trabalhadores de certo modo têm alguma ressonância no Estado. Daí a política desses respectivos governos de nacionalização das riquezas minerais, de petróleo, gás, minérios, e a preservação da água não como mercadoria privatizada. Tudo isso o Brasil jogou fora.
O governo Lula tem sido capaz de fazer privatizações que o governo FH não fez. E não fez a revisão de nenhuma delas. Lembre-se que, quando o MST fez a importante campanha pelo plebiscito da Vale, o governo Lula disse que a situação era intocável, que a história não andava para trás, e isso não entrou sequer na pauta de governo. É um governo tíbio, servil, que está completamente embasbacado com as vantagens do país "grande potência".
Nesse sentido, é curioso que, nos últimos anos, Lula tem reiteradamente feito referências à ditadura militar, sempre elogiosas. É o governo Geisel, o governo Médici, o Brasil cresceu... Quer dizer, recorre à ditadura militar como se aquele fosse um período positivo da nossa história. Isso mostra a tragédia em que nos enfiamos.
E há uma diferença do primeiro mandato para o segundo que temos de ter claro. Depois do destroçamento interno do governo que foi o mensalão, que devassou o PT, chegou à Casa Civil e atingiu o alto comando do partido e do governo, aconteceu que a oposição centro-direitista errou redondamente. Imaginou que podiam deixar o Lula seminocauteado o ano de 2005 inteiro, para chegar em 2006 e dar o golpe final na eleição, fazendo a sucessão. Erraram rotundamente. Porque a população percebe: entre um governo pífio como o do Lula e um governo pífio, ultra-elitista e anódino como o do Alckmin, era melhor o primeiro. A população tapou o nariz, não votou nele no primeiro turno, depois tapou o nariz mais ainda e disse: "Bom, vamos votar no menos nefasto", e deu uma chance para o Lula.
E também, por motivos mais ou menos conhecidos, havia uma impossibilidade de gestação de uma oposição de esquerda ampliada. Houve um processo eleitoral, a Heloísa Helena teve 7 milhões de votos - o que é muito expressivo para uma candidatura à esquerda da esquerda -, mas, com todas as dificuldades encontradas naquele momento, era mais uma candidatura para marcar um contraponto do que para empolgar as massas do país. Até porque a presença do Lula conquistada em 30 anos de lutas sociais ainda tem força no imaginário popular.

CC: Esse prestígio histórico do Lula acaba atravancando muito a resistência?

RA: Claro, porque a população diz: "Pelo menos ele está tentando fazer e não consegue". Não é isso, ele não está tentando. O Lula não tentou nenhuma medida substantiva contra a ordem. Ao contrário, o que ele faz - digo o governo, o Lula em si é parte dessa história - magistralmente bem é o que o governo Fernando Henrique fez razoavelmente bem, pela ótica das classes dominantes.
O governo Lula é aquilo que as classes dominantes nunca imaginaram que seria. Não sei se você se lembra, nas eleições de 2006, perguntaram ao ex-presidente do Itaú, Olavo Setúbal, quem ele preferia. Ele disse: "É a mesma coisa, tudo igual. O Lula está sendo o melhor dos mundos, estamos ganhando dinheiro como nunca, o Alckmin também é isso, então estamos tranqüilos, é questão de gosto, quase como time de futebol". Um ou outro, a garantia é a de que a política econômica dos juros altos, do receituário externo, aquela política balizada pelo FMI, das privatizações, da garantia dos recursos financeiros estrangeiros que vêm aqui, saqueiam o país e voltam, tanto o governo Alckmin como o Lula podem garantir.

CC: Mas essa história começou lá atrás, já no primeiro mandato.

RA: E a expressão disso é que, já em 2002, quando Lula ganhou a eleição, o presidente do Banco Central seria ninguém menos que Henrique Meirelles, que era presidente do Banco de Boston, recém eleito deputado federal pelo estado de Goiás, sem provavelmente nunca ter posto o pé lá, porque ele estava no jet-set internacional. Isso dá a dimensão da privatização dentro do Estado e do governo Lula.
Para dar um segundo elemento, que foi absolutamente surpreendente, há a liberação dos transgênicos, que foi uma imposição das mais nefastas transnacionais, com a Monsanto sempre à frente. Eu imagino o que não passou dentro do governo para que a liberação dos transgênicos fosse aprovada...

CC: Ou seja, é uma capitulação atrás da outra, a exemplo também da reforma trabalhista e sindical, que vem vindo de mansinho.

RA: Exato. Mas há um elemento também importante: naquela votação da emenda 3 - que proibia os auditores fiscais da Receita Federal de autuar ou fechar as empresas prestadoras de serviço quando entendessem que a relação de prestação de serviços com uma outra empresa era, na verdade, uma relação trabalhista, em prejuízo dos contratos de trabalho pela CLT -, que significaria um passo muito grave no processo de terceirização e precarização do trabalho, nesse momento, o governo Lula foi contrário. Porque o Lula, que é uma figura política muito inteligente, percebeu o momento.
No ápice da crise do mensalão, tenho a impressão que deve ter faltado muito pouco para ele renunciar. Quem convive lá, com o dia-a-dia do palácio, deve ter sentido que faltou pouco para o Lula fazer como o Collor: tirar o chapéu. Não sei se você se lembra quando ele deu uma entrevista a uma jornalista em Paris, assumindo que tinha mensalão, mas não tinha, que era, mas não era...
Quem segurou o governo Lula na crise do mensalão foi o grande capital, que deu a ordem de ninguém pensar em apagar o governo Lula, porque, com a economia estável, os bancos e o grande capital ganhando como nunca, quem seria louco de abrir uma crise política que podia detonar uma crise econômica? Portanto, a ordem do grande capital era não tocar no governo, daí o PSDB e o PFL não assumirem a luta pelo impeachment de Lula.
Nesse sentido, a rejeição da Emenda 3 foi muito pensada. O governo Lula deve ter feito um balanço de que estava perdendo muito rapidamente sua base social de trabalhadores e estava nas mãos integralmente do grande capital. Era preciso segurar algumas pontas de apoio, porque, numa segunda crise do mensalão, ele podia não ter mais o suporte desses setores de cima.
Mas, mesmo na primeira crise, era assim: "Vamos deixá-lo seminocauteado, o nocaute será nas eleições. Erraram feio. E em 2006 o que o Lula faz? Continua garantindo a boa vida para os ricos; lembre-se que uma vez ele disse que "nunca os ricos ganharam tanto dinheiro nesse país como no meu governo". Ele diz isso com orgulho, quer dizer, esse lado nefasto, trágico, que é a cara do governo Lula, ele destaca com orgulho.

CC: São os pequenos recuos para avançar na mesma direção...

RA: Suponha-se que haja uma crise do segundo governo numa situação econômica de instabilidade. Bom, aí as classes dominantes não teriam mais o que garantir. Por isso que, no meu entender, o presidente faz uma pequena inflexão em algumas medidas. Amplia o Bolsa Família, coopta centrais sindicais e aceita algumas das suas reivindicações, nesse caso justas, como, por exemplo, ser contra a "pejotização", que tiraria poder dos fiscais do trabalho.

CC: O apoio que foi dado às convenções 151 e 158 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) - que, respectivamente, institui a negociação coletiva no setor público e proíbe as demissões imotivadas na iniciativa privada - viria também nesse pacote de recuos para segurar a base social e não ficar só nas mãos do capital?

RA: Em parte sim, em parte não. Quanto à convenção da OIT que obriga a justificação para as demissões, sim. Mas com relação à outra, lembre-se das medidas que também foram tomadas e que impedem o direito pleno de greve do funcionalismo público, claramente uma imposição do FMI, do sistema financeiro, que quer detonar o funcionalismo. E uma das formas de impedir a organização do funcionalismo público é decretar a ilegalidade da greve.
Essa restrição ao direito de greve mostra o caráter anti-republicano do governo Lula. Então veja, ele caminha assim, uma vez ele cede, na outra ele bate.
Esta negociação coletiva estava atada, portanto, a uma segunda medida. Qual a segunda medida? Como o funcionalismo público passa a ter negociação coletiva, passa a ter direito restrito de greve. Algo do tipo "agora que vocês têm quem os represente, o direito de greve não é mais pleno". Uma concessão e uma cacetada.
No frigir dos ovos, tornar ilegal o direito de greve ao funcionalismo é um getulismo nos anos 2000. O que Getúlio fez com o decreto lei 19770/1931? Proibiu os sindicatos no setor público e o direito de greve, de todos os trabalhadores, incluindo o setor público. A Constituição de 88 concede o pleno direito de greve. Diz que vai haver uma regulamentação posterior, mas o preceito constitucional é o direito de greve. O governo Lula, por sua vez, está dando passos - e ainda vai tentar, pois não desistiu disso - no sentido de tentar coibir, restringir e, em certo sentido, impedir mesmo o direito de greve em vários setores do funcionalismo público.

Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br/content/view/1651/47/
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