Uma manifestação pacífica de agricultores transformou-se em praça de guerra após reação de policiais civis
Russas. Tiros, ameaças e empurrões. Este foi o saldo no protesto feito ontem de manhã no trecho da BR-116 em Russas. Trabalhadores rurais interditaram a via para marcar os quatro meses do assassinato do líder José Maria Filho, conhecido por "Zé Maria do Tomé". Mas foram ameaçados por policiais civis da Delegacia de Narcóticos (Denarc), que passavam pelo trecho e tentaram furar o bloqueio empunhando armas e dando tiros. Até a reportagem do Diário do Nordeste foi alvo da ação truculenta dos policiais, um dos quais deu tiros, apontou arma carregada e tentou destruir a câmera fotográfica do correspondente Melquíades Júnior.
Quando o garotinho Francisco Suerle, de 10 anos, e sua mãe empunharam cartaz pedindo para serem "ouvidos", porque no assentamento onde moram falta água "e um monte de outras coisas", não esperavam que o protesto pacífico do qual participavam terminasse de forma violenta. O movimento das famílias de assentamentos rurais foi o primeiro ato de uma série de manifestos que ocorreram por todo o dia de ontem e que culmina em debates, seminários e no Acampamento Zé Maria, até sábado, em Limoeiro do Norte.
Durante a madrugada de ontem, cerca de 200 moradores de seis assentamentos rurais de Russas e militantes sociais e de outros municípios da região jaguaribana ocuparam o KM-158 da Rodovia Santos Dumont, a BR-116, próximo à entrada do Assentamento Bernardo Marinho, que só tem recebido água potável quando aparece carro-pipa. A manifestação seguia pacífica, com gritos de guerra, palmas e cânticos de manifestações folclóricas desenvolvidas nos assentamentos. Até que às 7h20 um carro descaracterizado com policiais da Delegacia de Narcóticos percorria o sentido Interior-Capital e tentou furar o bloqueio humano formado em frente a uma barricada de pneus queimados e galhos de árvores impedindo a travessia.
Para impedir o furo ao bloqueio, os manifestantes se puseram na frente do veículo. Pelo menos dois policiais saíram do carro e sacaram um fuzil e uma metralhadora, deram quatro tiros para cima e caminharam apontando a arma em direção dos manifestantes. Houve tumulto, as mulheres gritavam, crianças saíam correndo, e um dos líderes do movimento gritava ao microfone que "esse é um movimento de paz, o que estamos vendo é violência e covardia por parte dos policiais". Fazendo o registro fotográfico da confusão, o correspondente Melquíades Júnior teve a arma apontada em sua direção e de manifestantes que estavam próximos. O policial avançou contra o correspondente e, ao empurrá-lo com o braço, puxou sem conseguir capturar a câmera fotográfica, sacudindo-a quatro vezes em direção ao chão.
Após a ação truculenta, os policiais desviaram o bloqueio pelo lado de fora da rodovia. Menos de 20 minutos depois do ocorrido, outros dois carros também descaracterizados com policiais do Denarc se aproximaram para furar o bloqueio. Com mais uma resistência dos militantes, um dos veículos, uma caminhoneta Hilux avançou sobre os manifestantes e desviou pelo lado direito da rodovia. Os protestantes pegaram pedras e pedaços de pau do chão e arremessaram na traseira do veículo, que seguia veloz. Indignados, três policiais desceram do carro e sacaram pistolas, atiraram para cima e fizeram ameaças. Às 8h da manhã os manifestantes marcharam para o Centro de Russas, para novo protesto.
MAIS INFORMAÇÕES: Cáritas Diocesana do Município de Limoeiro do NorteVale do Jaguaribe -(88) 3423.3222
ANÁLISE: Agressão moral em cobertura
Os conflitos que apuro, sigo e investigo, vêm do emaranhado de outros conflitos, que convergentes apontam: injustiça social. A cobertura de ontem, desde a madrugada, é elemento do contexto envolvendo comunidades visitadas em matérias anteriores. A interdição da rodovia por crianças e adultos desarmados teve uma pauta: água, terra e trabalho. O trabalho em textos e fotos têm motivo: intermediar os que reclamam de um problema e a instituição Estado, que, espera-se, além de se dever responsável, paga os policiais civis que ontem não agiram civilizados. Foi principalmente moral a agressão para calar a imagem que, por felicidade da notícia justa, permitiu-me registrar o cartaz de uma criança: "foi preciso estarmos aqui pra sermos vistos e ouvidos?"
DESRESPEITO
Excessos da Polícia serão denunciadosFortaleza. A Rede Nacional de Advogados Populares (Renap), que acompanhava o protesto de ontem na BR-116, disse que entrará com denúncia contra o policial que agrediu o correspondente Melquíades Júnior. "O policial gritou ´saia da minha frente´, avançou em mim, puxou a câmera com força, e se o equipamento caísse no chão certamente ficaria em pedaços. Mesmo assustado, eu ergui um braço em sinal de que não esboçaria qualquer reação, mas com a outra mão apenas continuava segurando a câmera pelo cordão, até que ele desistiu", conta Melquíades Júnior.
telefone, o titular da Delegacia de Narcóticos (Denarc), Everardo Lima, disse que o comboio, no qual ele também estava, voltava de uma operação no Vale do Jaguaribe. "Tentamos argumentar, pedimos para passar pelo lado, mas algumas pessoas do grupo começaram a atirar paus e pedras no veículo. E para preservar o patrimônio público, fizemos disparos para o alto, não houve intenção de ameaçar ou machucar quem estava ali", explica.
Ele afirma que o policial que estava no segundo grupo reportou a mesma situação e que foi necessário atirar para o alto para dispersar a multidão. "Considero que, dentro de uma situação de crise, o grupo se saiu muito bem. Fechar uma rodovia federal é um ato irregular e caberia até prisão diante da depredação dos veículos".
Com relação à agressão sofrida pelo correspondente do jornal, ele disse não ter presenciado a situação, mas que não aprova agressões contra profissionais de imprensa. "Se tiver ocorrido, é um ato reprovável e desnecessário", ressalta. Ele disse que orientou os policiais a registrarem um Boletim de Ocorrência e fazerem perícia nos veículos danificados. O caso deve ser encaminhado para a Delegacia de Russas para apurar responsabilidades da depredação.
Fonte e fotografias: Diário do Nordeste