Decisão vale para quem não conseguir provar legalidade da posse da terra. Políticos, banqueiros e empresas estariam entre os atingidos pela medida.
Irregularidades identificadas pela Justiça do Pará levaram o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a anular cerca de 5 mil registros imobiliários de áreas rurais situadas na região Sul do estado, em uma decisão administrativa contra a grilagem de terras sem precedentes na história do conselho. A medida foi assinada pelo corregedor nacional de Justiça, Gilson Dipp, na segunda-feira (16) e divulgada apenas nesta quinta-feira (19) pela assessoria do conselho.
Investigações realizadas no estado apontaram para a existência de registros de propriedades com área muito superior à permitida pela Constituição, o que levou a Justiça a desconfiar de fraudes e grilagem de terras. Os títulos já haviam sido bloqueados em 2006 e, agora, foram anulados definitivamente pela Justiça. Com o registro cancelado, a pessoa fica impedida de vender a propriedade ou utilizá-la como garantia em transações bancárias, por exemplo, até que a situação da propriedade seja regularizada. A medida adotada pelo CNJ ainda é passível de recurso na Justiça e, segundo Dipp, nenhum proprietário de terra será desalojado imediatamente.
“Ninguém vai ser desalojado da posse imediatamente e quem tiver título regularizado que apresente a posse. O que não pode é ficar matrículas bloqueadas. Se não provar a propriedade, quem vai reivindicar as terras será o Ministério Público”, explicou Dipp, ao G1. “É o início da legalização das terras no Norte do Brasil. É vontade política que o próprio Executivo de vários governos não teve o discernimento de fazer. Parece uma decisão muito grandiosa e é, sim, ela é. Mas é uma decisão administrativa perfeitamente compatível com as competências do conselho”, complementou.
De acordo com a decisão de 26 páginas, “devem ser cancelados todos os registros, com as averbações necessárias em todos os atos e transferências subsequentes encerrando-se a matrícula respectiva, nos Cartórios de Registros de Imóveis do interior do estado do Pará de sua situação, referentes aos imóveis rurais atribuídos a particulares pessoas físicas ou jurídicas e originariamente desmembrados do patrimônio público estadual por ato da Administração que configure concessão, cessão, legitimação, usucapião, compra e venda ou qualquer tipo de alienação onerosa ou não, e que, sem autorização do Senado ou do Congresso”.
São afetados pelas medidas os registros que tenham sido lançados, no período de 16 de julho de
A decisão não compromete os proprietários de terras que consigam comprovar à Justiça sua situação regular, como destaca o corregedor nacional de Justiça. “Ao particular é que cabe a prova de seu domínio”, afirma. “Vale enfatizar que o cancelamento dos registros e matrículas referidos não implicam, como é natural, a perda ou descaracterização da posse de quem regularmente a exerça com base no título afetado”, complementa em outro trecho.
‘Não estou decidindo de supetão’
Segundo o CNJ, políticos de projeção nacional, banqueiros e uma multinacional do ramo automobilístico estariam entre os proprietários de terras que agora terão de provar à Justiça paraense a legalidade dos títulos de posse na região. Com a medida, o CNJ delegou ao Tribunal de Justiça paraense, mediante análise conjunta de órgãos do poder Executivo estadual, a missão de verificar os casos em que os proprietários de terras estiverem em situação regular.
“Não é possível que tenha mais grilagem de terra. Não estou decidindo de supetão, estou sendo provocado pelo poder público, nada mais que o próprio estado do Pará, que sofre com a grilagem de terras. Então, há grandes empresas, grandes empresários que terão de provar a legalidade de suas terras. E se provarem, não terá problema algum”, afirma o corregedor nacional de Justiça.
No despacho, Dipp atende ao pedido de diferentes órgãos públicos do Pará e da União para que sejam declarados nulos os títulos e devolvidas ao poder público estadual as terras cujos documentos estão sob suspeição. No próprio texto, Dipp relata trechos de outra medida adotada pela Justiça paraense que já havia bloqueado os registros imobiliários há quatro anos.
“É expressivo o número de registros que a administração identificou como manifestamente inválidos pela data, pela origem, pela dimensão ou pela afrontosa incongruência ou falsidade de seus termos à expressão constitucional então vigente”, relata o despacho.
O corregedor nacional de Justiça adverte os órgãos paraenses responsáveis pela área a adotar critérios rígidos para liberar os registros de terras no estado, sob pena de criar conflitos que comprometam a “ordem pública”: “Devo assinalar o absoluto cuidado e a necessária cautela ante a eventual e abrupta liberação de tais terras, fruto do cancelamento ora determinado. Com efeito, não interessa ao patrimônio público, à paz e à segurança social ou à ordem pública que sendo cancelados os registros abra-se novo e talvez mais grave avanço sobre esses bens públicos, ou se instalem distúrbios, disputas ou crimes a propósito deles.”
410 milhões de hectares
Por registros “manifestamente inválidos” e com “afrontosa incongruência”, a decisão de Dipp menciona o exemplo de um caso em que o CNJ declarou nulo o registro imobiliário de um suposto proprietário de terras de Vitória do Xingu (PA). No processo, que tramitou na comarca de Altamira, o dono das terras, a partir de uma matrícula, sustentava manter propriedade particular, “sem qualquer justificativa e fundamento de fato”, com a extensão de mais de 410 milhões de hectares. “Ou seja, área maior do que vários estados da federação”, anotou o despacho que anulou o registro.
Em sua decisão, Dipp cita estudos realizados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário segundo os quais “apontam que a área grilada no Brasil beira os 100 milhões de hectares, dentre os quais 30 milhões se localizam no Estado do Pará”.
Segundo Dipp, “na tentativa de combater os crimes relacionados com a grilagem de terras, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa), ainda no final da década de noventa, ajuizou mais de quarenta ações de cancelamento de registros irregulares envolvendo uma área superior a 20 milhões de hectares, e que o Departamento Jurídico do órgão, que tem a responsabilidade de administrar o patrimônio fundiário estadual, declarou reiteradas vezes que outras centenas de ações poderiam ser ajuizadas envolvendo milhões de hectares”.
Fonte: G1