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Por Silvia Beatriz Adoue*
Em 2007, três estudantes da Unesp de Araraquara (SP) foram expulsos da universidade sob acusação de vandalismo. Os bancos do campus da instituição pública, utilizados pelas empresas privadas para fazer propaganda dos seus produtos, apareceram pichados com dizeres que defendiam o uso público do patrimônio público. Não longe dessa cidade, desta vez no município de Iaras, trabalhadores rurais sem-terra ousaram ocupar terras públicas apropriadas por uma grande empresa privada, a Cutrale, que controla 30% do mercado mundial de suco de laranja. Os sem-terra limparam uma parte do terreno para fazer um roçado de feijão. Também desta vez, os que questionam o uso privado do patrimônio público foram acusados de vandalismo.
Mas, quem eram os vândalos? Em 2007, e a propósito da expulsão dos estudantes da Unesp, o professor João Bernardo foi atrás da origem dessa palavra. No seu artigo 'Os vândalos' [CMI Brasil - Os vândalos],ele lembrou daquele povo germânico que, quando aconteceram as grandes revoltas de escravos que trabalhavam nos latifúndios do Império Romano, se uniu aos trabalhadores em rebelião contra os grandes proprietários do império. O que era um escândalo, já que quase todos os povos germânicos que viviam nas fronteiras da Roma imperial serviam de tropa mercenária para esmagar as revoltas antiescravistas. Os vândalos não. E, por essa ousadia, ganharam a pecha de desordeiros, recalcitrantes e irredutíveis. Hoje, vandalismo é sinônimo de ação destrutiva e irracional, de violência descontrolada.
É muito curiosa a história das palavras. Elas envelhecem conservando nas rugas o que os acontecimentos deixaram marcadas na sua pele, significados ocultos, insuspeitados pelos seus portadores do presente. Os que hoje enunciam a acusação de vândalos, se valendo para isso do controle dos meios de comunicação, estão longe de pensar que se tratava de um povo valente, que não se curvava à lei dos mais poderosos e se aliava aos oprimidos e humilhados da época. Eis que a palavra, que na boca dos que a pronunciam pretende ser insulto, recupera hoje algo do seu sentido original.
No dia 29 de outubro, o MST convidou para um ato no assentamento que homenageia um outro vândalo, este, do século 17, Zumbi dos Palmares. A área é a mais antiga conquista da reforma agrária na região de Iaras. Do alto do assentamento, dava para ver um vale que se espalha no meio a colinas suaves. Atrás e aos lados de uma faixa de um verde escuro de eucaliptos, se estende um mar de cor verde um pouco mais clara que parece não ter fim: são os pés de laranja que a Cutrale plantou em terra pública comprada de grileiros. Enquanto os olhos dos participantes se enchiam desses dois únicos tons de verde, um dos vândalos do nosso tempo explicava com uma racionalidade implacável os procedimentos do agronegócio da madeira e da laranja na região: 180 mil hectares de terra pública grilada, 11 assentamentos sufocados por falta de apoio do Incra.
Bem no coração de Iaras, a Escola Popular Rosa Luxemburgo cresce em meio aos assentamentos. No início deste ano começou a estudar nela a primeira turma de agronomia, curso conveniado com a Unesp. Na escola, um biodigestor em construção, uma horta em forma de mandala, na qual os futuros agrônomos aprendem a produzir uma variedade de cultivos com técnicas que dispensam agrotóxicos, imprescindíveis na produção em grande escala de um cultivo só.
Na beira da estrada de saída da região, centenas de famílias acampadas acenam do lado dos barracos de lona preta. Acenam para os passantes e para o porvir. Para um dia em que possam pintar aquele vale com uma paleta multicolorida, que possam proteger essa terra do estrago do monocultivo, para que ela seja morada e fonte de alimentos para suas famílias e para todos os brasileiros.
Estes novos vândalos não precisam de intérpretes e nem de porta-vozes. E o povo das cidades precisa ouvir suas razões. Motivos mais do que lógicos para cometer a ousadia de se opor aos romanos de hoje.
*Silvia Beatriz Adoue, argentina radicada no Brasil, é mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo, doutora em literatura latinoamericana pela FFLCH-USP e professora da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF). Publicado originalmente em 2007 no jornal Brasil de Fato.