“A usina de Jirau já foi palco de flagrantes de descumprimentos da legislação trabalhista. Houve registro de trabalho escravo. Um grupo de 38 trabalhadores migrantes foi libertado em setembro de 2009 pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego – Rondônia (SRTE/RO) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), com apoio da Polícia Federal (PF)”, denuncia Maria Ozânia da Silva à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail.
À frente da coordenação da Pastoral do Migrante de Rondônia há dois anos, Ir. Maria Ozânia acompanha os trabalhadores que chegam à cidade para atuar nas obras da hidrelétrica de Jirau e conta que o aliciamento na região é constante. Os “gatos”, como são conhecidos os contratantes, prometem bom salário, carteira assinada e outros benefícios. “Como são regiões do país com muita mão de obra disponível, pois não há muitas alternativas, os migrantes acabam tornando alvo fácil. Temos conhecimento de que tal esquema exige até mesmo passagem por postos do Sistema Nacional de Empregos (Sine)”, aponta.
Segundo Maria Ozânia, os trabalhadores migrantes saem da sua região com promessa de emprego e, ao chegarem a Porto Velho, “acontece de terem que esperar três, quatro dias para serem contratados”. Além do mais, o município de Porto Velho não estava preparado para receber um grande número de migrantes e os impactos são sentidos por toda a população. “Na saúde há um descaso grande, pois os meios existentes não suportam a demanda; o trânsito é caótico; o custo de vida é altíssimo”, constata.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a atual situação das obras da hidrelétrica de Jirau, no Rio Madeira, em Porto Velho, Rondônia?
Maria Ozânia da Silva – As obras de Jirau e Santo Antônio fazem parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, e contam com o suporte de recursos do Banco Nacional do Desenvolvimento Social (BNDES).
Para termos uma ideia do tamanho do projeto, a usina de Jirau já foi palco de flagrantes de descumprimentos da legislação trabalhista. Houve registro de trabalho escravo. Um grupo de 38 trabalhadores migrantes foi libertado em setembro de 2009 pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego – Rondônia (SRTE/RO) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), com apoio da Polícia Federal (PF). As vítimas estavam trabalhando para a Construtora BS, que presta serviço ao consórcio.
Temos conhecimento de que até junho de 2010 foram encaminhados 330 autos de infração (cada auto se refere a uma irregularidade) registrados contra empresas ligadas à obra de Jirau. Na mesma procuradoria, estão ativos 55 procedimentos para apurar irregularidades trabalhistas nos canteiros da usina.
No ponto de vista trabalhista, a questão é a seguinte: A obra está com um sério problema de prazo, pois a Camargo Corrêa precisa entregar até 1º de julho todo o vertedouro com 18 comportas e até o presente momento concluíram aproximadamente 3/4 apenas. Isto está trazendo sérias consequências para a segurança dos trabalhadores e trabalhadoras migrantes, pois a produção sempre vem em primeiro lugar em detrimento da segurança.
IHU On-Line – Como funciona o aliciamento de trabalhadores em Rondônia? Quem são os aliciadores?
Maria Ozânia da Silva – O esquema não diferencia muita de outras realidades do Brasil, onde está em pleno desenvolvimento os grandes projetos do agronegócio e do hidronegócio.
O “gato”, como é denominado, chega à região destinada (principalmente o nordeste) e anuncia que está contratando trabalhadores para tal obra com um bom salário, carteira assinada.
Como são regiões do país com muita mão de obra disponível, pois não há muitas alternativas, os migrantes acabam tornando alvo fácil. Temos conhecimento de que tal esquema exige até mesmo passagem por postos do Sistema Nacional de Empregos (Sine). Essa passagem acontece em vários locais do país sendo mais frequente na unidade de Porto Velho (RO).
O processo é doloroso, pois muitas vezes os trabalhadores migrantes saem da sua região de origem com empréstimo; veem com a promessa de emprego, salários bons. No entanto, muitos têm que pagar sua passagem e suas despesas de viagem. Chegando a Porto Velho, acontece de terem que esperar três, quatro dias para serem contratados. Neste período, ficam alojados em casa de amigos, conhecidos ou pensões.
Segundo informações, é possível que haja envolvimento até mesmo de pessoas do Sine em alguns estados da federação. Podemos concluir que o esquema de aliciamento está cada vez mais sofisticado. Hoje existem empresas formais subcontratadas presentes em diversos estados; elas buscam driblar a legislação.
IHU On-Line – Há fiscalização dos órgãos competentes?
Maria Ozânia da Silva – Sim, dentro das possibilidades. No entanto, através de relatos de trabalhadores migrantes percebe-se um grande descontentamento em relação à presença e atuação dos sindicatos.
IHU On-Line – De que regiões do país vêm os migrantes que trabalham nas obras do rio Madeira?
Maria Ozânia da Silva – Há trabalhadores do próprio estado de Rondônia, estados do Norte, Nordeste e até de alguns estados do Sul e Sudeste, para o desenvolvimento de algumas atividades que requeiram melhor qualificação.
IHU On-Line – A senhora tem contato com os trabalhadores da hidrelétrica? Quais as reclamações e depoimentos deles?
Maria Ozânia da Silva – Sim. Há várias situações em que os trabalhadores migrantes vêm partilhar conosco a saudade de seus familiares, expressam o sentimento de frustração pelo salário recebido, pelos descontos efetuados sem muitas vezes saberem a origem.
IHU On-Line – Que trabalho a Pastoral do Migrante de Rondônia está desenvolvendo junto aos trabalhadores e trabalhadoras?
Maria Ozânia da Silva – Nossa presença ali se dá de forma programada, por meio de uma Igreja comprometida com o Projeto de Jesus Cristo. Por tanto, é um trabalho de muita escuta e acolhimento.
Fazemo-nos presente em vários momentos: celebrativos, de luta, reinvidicatórios. Para nós, é prioridade a defesa dos direitos dos migrantes, independente de seu credo religioso. Por meio de ações que visam aproximar os migrantes à comunidade local, buscamos sensibilizar e conscientizar para o acolhimento.
IHU On-Line – Quais as implicações da obra para a região? O que mudou em Porto Velho após a construção da hidrelétrica?
Maria Ozânia da Silva – As implicações e as transformações são visíveis: na saúde há um descaso grande, pois os meios existentes não suportam a demanda; o trânsito é caótico; o custo de vida é altíssimo.
Na verdade, o município de Porto Velho não se preparou com infraestrutura para receber o grande número de migrantes. Com isso, sofre a população local e mais ainda os migrantes. Há uma verdadeira especulação. O custo de vida na região, hoje, é um dos mais altos das capitais do Brasil.
IHU On-Line – Como a população local tem reagido à obra de Jirau?
Maria Ozânia da Silva – Está é uma questão ambígua. Há grupos que defende a obra, pois gera riqueza ao município, há uma circulação grande de dinheiro, há trabalho. Outro grupo denuncia os impactos sociais e ambientais que estes projetos causam.