Sem ter para onde ir, famílias dos baixões vivem primeiros desesperos causados pela Usina
Ruy Marques Sposati
de Altamira (PA)*
Vinte de maio, era o princípio de uma ocupação urbana de famílias sem-teto em Altamira, no Pará. Eu estava lá; chegara algumas horas antes e podia ver se aproximarem, de cima, as pessoas, os cachorros, as conversações. Um pouco de barulho matinal.
Esta era a segunda ocupação na cidade nos últimos dias. As duas estão na conta da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Trinta mil famílias alagadas – e nem sinal de indenização. Dizem que em Tucuruí, no processo da construção, ocorreram 37 ocupações – o que significa que, aqui, estamos apenas no começo.
As mulheres iam roçando e dividindo os lotes: 20 por 10 metros. Os homens iam roçando e dividindo os lotes: 20 por 10 metros. As crianças não se divertiam. Fogueiras queimavam cobras e alguma juquira. No cadastro improvisado, 135 famílias. No terreno cabem mais ou menos 200 famílias, guardando o devido espaço para ruas, escola, posto de saúde e centro comunitário.
Segundo dia de ocupação. Vinham mais famílias às bicas; carregavam consigo garrafas térmicas com o café fraco e borrento e potinhos com bolos e cozidos, e mais crianças. Atrás delas, vinha a polícia. Com as armas. Atrás deles, os cachorros.
Um delegado muito sóbrio vinha com um título de propriedade em punho. Ali dizia: terreno da Eletronorte. Achava tratar-se do mandado de reintegração de posse. “Mas, seu guarda, onde tá o mandado e reintegração de posse?”. Com esta pergunta fui levado para a delegacia e indiciado por esbulho possessório e acusado de liderar a tropa. As famílias são despejadas sob cassetetes e spray de pimenta. A polícia leva todas as ferramentas.
Caças e rojões
Caças e rojões
Duas horas depois, cabisbaixo, saio da DP, quando topo com a frota de bicicleta: era a rapaziada da ocupação que havia me seguido até a delegacia. Com a prisão, fiquei carimbado entre os ocupantes como aliado. Sorriem: “Bora conhecer onde a gente mora. Você come caça?”. Era hora do almoço. Havia uma bicicleta para mim.
Chegamos ao baixão da Aparecida, bairro quente e pobre situado na área que será diretamente alagada pela construção de Belo Monte. Um tecnobrega no carro com alto-falantes no porta-malas; ouviremos isto por todo o almoço.
Corredores estreitos ladeados por pequenos quartinhos. A primeira porta do barraco está trancada com cadeado. “O rapaz daqui fugiu. Era ele e o irmão aí nesse quarto. O cara aumentou, não tiveram dinheiro pra pagar o aluguel e fugiram. A gente cobriu pro dono não pegar, a gente sabe onde eles estão, leva comida”, contam.
Subimos uma escada de ripa apodrecida. “O aluguel lá embaixo começou em 70 [reais] e tá em 200. Aqui em cima agora tá 250. Agora eu divido o quarto com ele”, aponta, com gracejo, para o melhor amigo. “Minha mulher sempre falou que era só o que faltava: eu mudar logo pra casa dele”.
Este é o contexto de 178 famílias – segundo o último levantamento do censo – que ocupam um terreno em desuso há mais de 30 anos na parte alta de Altamira. Estas famílias são parte de um universo de 6.500 famílias de bairros paupérrimos da cidade, conhecidos como baixões, que deverão ser alagados caso a usina seja construída.
Por caça, entenda-se catitu – ou porcão, ou porco-do-mato. Definitivamente, a melhor carne das redondezas, seguida pela de jabuti. Vão preparando o carvão e fazendo a vaquinha da cerveja. São bastante jovens, mas fanáticos por carimbó. Se auto-intitulam “Verequete”, em referência ao rei do carimbó.
Quando o local ia se esvaziando, um “verequete” surge disparando rojões como um aviso para que todos voltassem ao terreno.
Largam os barracos e rumam novamente à ocupação. E adormeceram lá, de um dia para o outro. Uma fileira extensa de redes com muitas cores e muita gente dentro.
Mais uma vez a polícia
Mais uma vez a polícia
Terceiro dia. Ressurge a polícia, novamente sem mandado, mas com um elemento surpresa: balas de borracha e bombas de gás. Despejam, desta vez, ao menos 350 ocupantes. Trinta e duas pessoas foram detidas e levadas à delegacia – entre elas, três menores de idade. Recolhem novamente todas as foices e facões. “A gente compra outros”, diz um dos manifestantes.
Mas a dor das pessoas não sai no jornal. A ação policial foi violenta, mas não apareceu na imprensa local. “Eles chegaram com tudo, apontando arma na nossa cara”, disse um dos despejados. “Aproveitaram a hora do almoço e o fato de não ter nenhum canal de televisão aqui naquela hora”. Enquanto colhíamos estes depoimentos, era possível ouvir o som de mais bombas e tiros na área interna do terreno. Não era permitido à imprensa entrar para acompanhar a ação da PM.
“Se este terreno é da Eletronorte, por que a empresa não vem aqui dizer onde é que a gente vai ficar?”, questionou I., moradora da Invasão dos Padres, bairro que será atingido por alagamento. “A empresa vai botar o povo debaixo d’água. Se ela tem coragem de mandar expulsar a gente, como não tem coragem de enfrentar o povo, de dizer que a gente vai ficar no fundo? Igual em Tucuruí. Minha casa está até hoje no fundo lá e eu nunca recebi um real”, gritava para a imprensa uma das sem-teto ocupantes. Sua mãe fora detida pela polícia.
Área em disputa
Área em disputa
Apesar de ter sido identificada como de posse da Eletronorte pela polícia, a posse da área ocupada pelos sem-teto é disputada por empresários da cidade.
O diretor da rádio e TV Vale do Xingu, grupo ligado ao político Domingos Juvenil (PMDB-PA), Miguel Ceci foi à imprensa local (leia-se, o próprio canal) reivindicar a posse do terreno e pedir que a polícia tomasse providências quanto à desocupação.
Ceci ameaçou ostensivamente os sem-teto e agrediu um cinegrafista local com um facão.
Outro elemento, identificado como Ubiratan e que se dizia “amigo do proprietário”, intimidava os ocupantes e a imprensa, e discursava para os presentes responsabilizando o Bispo da Prelazia do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário, Dom Erwin Krautler, como o causador dos problemas. “Vocês acham que uma pessoa de Deus teria sido ameaçado de morte? O Bispo é a besta-fera”, bradou para um grupo de homens que olhava a ocupação, próximo à sua caminhonete com placa de Macapá (AP).
No entanto, a versão oficial da posse da área veio com a polícia. O delegado garantiu aos moradores que o documento era legítimo, embora o papel que possuísse em mãos fosse apenas uma cópia gasta pelo tempo, o que não permitia uma análise apurada. Ainda mais se tratando de um documento baseado em coordenadas geográficas latitudinais e longitudinais. Não deu tempo de ligar o GPS.
Fonte: Brasil de Fato