Ariovaldo Umbelino*
A MP 422 assinada por Lula e Cassel em 25 de março tornou-se a Lei Nº 11.763 de 1º de agosto de 2008, depois de sua publicação no Diário Oficial da União no último dia quatro de agosto. Ela já havia sido aprovada pela Câmara de Deputados no dia 13 de maio e pelo Senado no dia nove do mês de julho com o voto contrário de oito senadores do PT, a saber: Marina Silva, Eduardo Suplicy, Aloízio Mercadante, Tião Viana, Fátima Cleide, Flávio Arns, João Pedro e Paulo Paim. O fato curioso desta votação foram as abstenções do comunista Inácio Arruda do PC do B e de Renato Casagrande do PSB, além é óbvio, da votação favorável junto dos representantes dos grileiros, dos petistas Augusto Botelho, Delcídio Amaral, Serys Slhessarenko e Ideli Salvati.
Este ato legal torna Luis Inácio Lula da Silva o primeiro presidente civil, e o que é mais agravante, o primeiro operário a legalizar a grilagem de terras públicas na Amazônia brasileira. Antes dele, foi o Imperador D. Pedro II por ocasião da Lei de Terras de 1850 do então Senador Vergueiro, que entregou gratuitamente as terras das sesmarias e das posses quaisquer que fossem as suas dimensões para as elites que as ocupavam ilegalmente.
Depois, foram os militares pós 1964, representados pelo General Médici na década de 70, que “venderam por um preço simbólico” milhões de hectares de terras públicas na Amazônia Legal. Preço simbólico representado, por exemplo, como indiquei em minha tese de livre docência, pela compra feita pela Indeco S/A - Integração, Desenvolvimento e Colonização, na época propriedade de Ariosto da Riva - ex-sócio do grupo Ometto na Agropecuária Suiá-Missu - que adquiriu 500 mil hectares da gleba Raposo Tavares em 1971, pelo preço de Cr$ 15 o hectare - quantia esta que naquela época dava para comprar seis maços de cigarro de marca Hollywood. Além dessa área, ele também, adquiriu do governo do estado de Mato Grosso em 1973, outra área contígua a anterior com 400 mil hectares, por apenas Cr$ 50 o hectare, ou seja, o equivalente a 20 maços de cigarro da mesma marca.
Estes exemplos históricos somados ao de Lula mostram que a elite brasileira raramente botou “a mão no bolso” para comprar a terra. Ela sempre criou instrumentos legais para se apropriar gratuitamente de vastas extensões de terras no Brasil. É por isso que o capitalismo no Brasil tem o caráter rentista. Em primeiro lugar foram as sesmarias, instrumento jurídico da coroa portuguesa que baseado em Lei de 26 de junho de 1375, eram doadas aos “homens de bem da corte”.
Depois veio a grilagem. A origem da grilagem das terras públicas devolutas ou não, no Brasil, iniciou-se com a Lei de Terras de 1850, pois, enquanto o artigo primeiro instituía a propriedade privada da terra somente por meio da compra e venda, o artigo segundo proibiu a posse de todas as terras devolutas que pertenciam ao Império. Inclusive, tornou o ato crime e seu autor ficava sujeito a uma pena de dois a seis meses de prisão, multa de 100 mil réis e inclusive responsável pela reparação dos danos causados.
Portanto, a Lei nº 601 de 18/09/1850 legitimou por meio de seu artigo quinto, todas as posses existentes até então, quaisquer que fossem suas áreas, desde que medidas e registradas nos livros das freguesias até 1856. Porém, depois deste prazo, passou a interditá-la. Mas, tudo no plano legal, porque no imaginário social de então, continuava valer a abertura da posse como instrumento de acesso à propriedade privada da terra.
A Constituição da República de 1891 transferiu para os Estados as terras públicas devolutas, mas manteve sob controle da União as terras das faixas de fronteira e da Marinha. Entretanto, o governo federal e os governos estaduais nunca fizeram as ações discriminatórias e as arrecadações das terras públicas devolutas.
É por isso, que na atualidade, mais de 212 milhões de hectares de terras públicas devolutas ou não, estão fora dos registros do Incra, dos Institutos de Terras estaduais e dos Cartórios de Registro de Imóveis. Ou seja, estão cercadas, mas, não existem para o Estado. Outros 84 milhões de hectares aparecem no cadastro do Incra como posse, e, dentre elas apenas, 21 milhões de hectares são posses legalizáveis, pela legislação em vigor. Outros 63 milhões vão se somar aos 212 milhões totalizando 275 milhões de hectares de terras cercadas ilegalmente no país.
Cabe esclarecer que a Constituição de 1988, permite a regularização apenas das posses até 50 hectares, e até 100 hectares excepcionalmente. Logo, as áreas maiores ocupadas não podem ser legalizadas. Foi por isso que os grileiros sempre atuaram politicamente para impedir que os governos estaduais e a União fizessem as ações discriminatórias das terras devolutas sob suas jurisdições. E, aí está a razão pela qual são contra a reforma agrária, porque a luta desencadeada pelos movimentos sócio-territoriais revelou esta estratégia ilegal dos que se dizem “proprietários” de terras, mas, que na verdade revela a sua face grileira na apropriação privada do patrimônio público.
Somente no Estado do Pará da governadora do PT que é da mesma corrente política do ministro do MDA, por onde começou a aplicação da MP 422, há no cadastro do Incra 47 mil minifúndios apossando-se de apenas 1.5 milhões de hectares; 27 mil pequenas propriedades ocupando 2.9 milhões de hectares, mas lá há 3 mil médias propriedades grilando 1.6 milhões de hectares. E mais, destas médias propriedades apenas 274 são produtivas, ou seja, mais de 3 são improdutivas e vão ser legalizadas, e com elas, mais de 1.4 milhões de hectares. Isto para não falar das 1.9 mil grandes propriedades presente no cadastro do Incra indicando a grilagem de 4.9 milhões de hectares, das quais 1.7 mil são improdutivas e ocupam 4.6 milhões de hectares, que certamente serão desdobradas em áreas menores para se enquadrarem na MP 422.
É por isso que Lula entrará para a história como o presidente operário companheiro dos grileiros das terras públicas da Amazônia Legal. E, para todos aqueles e aquelas que continuam gritando indignados contra este verdadeiro “crime lesa Pátria”, resta ainda a possibilidade de se impetrar uma ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Portanto, a luta contra a MP 422 continua.
(*) Professor titular de Geografia Agrária pela Universidade de São Paulo (USP). Estudioso dos movimentos sociais no campo e da agricultura brasilera, é autor, entre outros livros, de "Modo capitalista de produção (Ática, 1995)", "Agricultura camponesa no Brasil" (Contexto, 1997).