Um painel de 40 especialistas lançou documento com análises do projeto hidrelétrico de Belo Monte, no Rio Xingu, previsto pelo governo para ser oferecido em leilão em novembro. Os pareceres foram entregues ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), no dia 01 de outubro de 2009, para servir como insumo da análise sobre a viabilidade ambiental do projeto, e ao Ministério Público Federal (MPF), que verificará se há violações da lei, dadas as graves consequências do projeto.
O painel identificou, primeiramente, diversas omissões e falhas nos estudos de impactos ambientais, que dificultam análises mais conclusivas sobre temas considerados chave. Apesar do pouco tempo que tiveram para a análise dos documentos, os especialistas concluíram que Belo Monte deve causar graves consequências para a região, seus habitantes e os ecossistemas da floresta amazônica e, ainda, que o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) ignora a dimensão da maioria desses impactos.
Para os especialistas, a inédita ineficiência energética do projeto e o processo acelerado e atropelado das audiências públicas mostram que o governo e as empreiteiras pleiteiam uma grande obra a qualquer custo. O Painel de Especialistas, de maneira cidadã, alerta o governo e a população para este grave equívoco, cujos custos reais não são conhecidos e os estudos incompletos e subdimensionamentos do EIA não permitem afirmar.
Entre os temas analisados estão a viabilidade econômica do projeto; os impactos da construção do projeto numa área cobrindo mais de 1000 km2; os impactos sobre as populações indígenas; o caos social que seria causado pela migração de mais de 100.000 pessoas à região e pelo deslocamento forçado de 20.000 pessoas; os impactos sobre peixes e fauna aquática em geral; a possibilidade de extinção de espécies; as emissões de grandes quantidades de gases de efeito estufa; a insegurança hídrica e alimentar; a subestimação da população atingida e subestimação da Área Diretamente Afetada (ADA).
Segundo Francisco Hernandez, engenheiro elétrico da Universidade de São Paulo (USP), e um dos coordenadores do painel, “o barramento altera a dinâmica sazonal da Volta Grande do Xingu, exuberante palco da biodiversidade amazônica que evoluiu seguindo esta dinâmica flutuante das águas, um monumento fluvial de primeira grandeza”.
Para Hernandez, Belo Monte é “de duvidosa viabilidade de engenharia, uma obra extremamente complexa que depende da construção não apenas de uma barragem, mas de uma série de grandes barragens e diques que interromperá o fluxo de águas numa área enorme, demandando a movimentação de terra e rocha com volumes semelhantes ao da construção do Canal de Panamá”.
Ele frisou que Belo Monte deve gerar pouca energia durante o período de 3 a 4 meses por ano de águas baixas – uma ociosidade anunciada. “Este quadro não justifica um investimento estimado em R$21 bilhões, conforme a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ou em mais de R$30 bilhões, conforme estimativas de empresas privadas e do presidente da Eletronorte, sem contar o enorme custo social e a enorme devastação que o projeto causaria”.
Sônia Magalhães, antropóloga da Universidade Federal do Pará (UFPA), e co-coordenadora do painel diz: “O EIA subestima a população rural, de forma que a população diretamente afetada pode ser o dobro daquela indicada. Somente um novo levantamento pode confirmar o número real”. Segundo Magalhães, os programas propostos para mitigação não contemplam a enormidade do projeto e seus impactos.
Entre os impactos mais importantes identificados pelos estudos dos especialistas são os que deveriam resultar do desvio de mais de 80% da vazão do Xingu para dois canais artificiais no caminho para a casa de força.
Segundo estudos feitos pelo hidrólogo Jorge Molina Carpio, não há justificativa técnica demonstrável para a escolha da chamada “vazão ecológica” que deixará as populações da Volta Grande do Xingu em situação de insegurança hídrica e alimentar. “A Volta Grande do Xingu sofrerá, ao longo de cerca de 100km, redução da vazão e rebaixamento do lençol freático, originando um Trecho de Vazão Reduzida (TVR) com vários impactos biológicos e sociais associados, como os problemas para a navegação e os efeitos sobre as florestas inundáveis”.
Análise similar é feita por Geraldo Mendes dos Santos, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), uma das maiores autoridades em ictiofauna amazônica: “o valor máximo previsto para as vazões no TVR não passa de 8.000m3/s, mas é bom lembrar que este valor não chega nem a um terço do valor máximo da cheia natural do Rio Xingu, que gira em torno de 23.000m3/s”.
Isso significa que o TVR jamais disporá das condições naturais antes existentes e sob as quais a fauna e a flora se desenvolveram. “Por certo, o conjunto das espécies que vivem neste trecho do rio não sobreviverá sob um regime de vazão imposto por decreto ou norma administrativa, quer estas venham do governo, das empresas ou mesmo da ciência”, afirma Mendes dos Santos.
Paulo Buckup, presidente da Sociedade Brasileira de Ictiologia, e um grupo de ictiólogos afirmam: O EIA “não dimensiona o impacto real sobre a ictiofauna na área de 100 km que será atingida (...). A vazão reduzida irá provocar a mortandade de milhões de peixes ao longo dos 100 km ou mais da Volta Grande e não há medida a ser tomada que mitigue ou sequer compense este impacto”.
Antonio Carlos Magalhães, antropólogo que se dedica há décadas a estudos na região, também especialista do Painel, sustenta que a Volta Grande se constitui no principal alvo de Belo Monte. “É onde estão localizados a barragem principal , diques, canais, canteiros e a redução da oferta de água pela vazão reduzida proposta. Todas as principais obras ficarão no limite das terras indígenas, sujeitas aos impactos físicos da obra e, sobretudo, aos impactos sociais e culturais que a proximidade do canteiro de obras, afluxo de população empregada e em busca de emprego sabidamente provocarão”, preocupa-se.
Os pesquisadores concluíram que os efeitos sobre a população da Volta Grande, principalmente indígena, serão o equivalente a uma seca permanente, com diminuição do lençol freático, mudanças nos trechos navegáveis, importante perda de fauna aquática e terrestre, além de escassez de água: “Isto é, perda de recursos naturais, inclusive hídricos, que incidem diretamente sobre os padrões da vida social dos índios que ali vivem”, traduz Antonio Carlos Magalhães. Mesmo com tão graves consequências, os índios, ribeirinhos e lavradores da Volta Grande não foram considerados pelo EIA como diretamente impactados.
Para Nirvia Ravena, professora da UFPA, “ao deixar de existir, a segurança hídrica é um direito violado, mas uma vez que ela sequer é mencionada não há como detectá-la no EIA. Comprometer com tal intensidade as formas de vida dessa população torna inviável a construção da hidrelétrica”.
“A lógica exige que os atingidos pela secura do rio e das águas subterrâneas sejam considerados atingidos tanto quanto os atingidos pela inundação de suas terras e benfeitorias. A ética exige que todos os que seriam de fato prejudicados sejam considerados como atingidos, e nesse caso, o numero oficial estaria claramente abaixo da realidade, analisa Oswaldo Sevá, engenheiro mecânico, professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Hermes Medeiros, doutor em ecologia, professor da UFPA, parte de uma constatação que impressiona: “a bacia hidrográfica do Rio Xingu apresenta uma das maiores riquezas de espécies de peixes já observada na Terra, com cerca de quatro vezes o total de espécies encontradas em toda a Europa”.
Quanto aos mamíferos aquáticos o especialista assinala: “o fato mais notório sobre os mamíferos aquáticos é que o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) trata deles apenas de maneira descritiva, com base na literatura e em dados de coleta. Não há um parágrafo sequer sobre avaliação de impactos que a hidrelétrica acarretará sobre eles, nem sobre o ambiente em que vivem. Esta omissão é grave e precisa ser reparada”.
Com Belo Monte, a barreira geográfica natural das corredeiras e pedrais da Volta Grande deixará de existir, o que ameaça a biodiversidade presente. Medeiros conclui que o sistema de eclusas proposto poderá romper este isolamento, “causando extinção de centenas de espécies, além de impactos socioeconômicos imprevisíveis, inclusive para o próprio aproveitamento hidrelétrico, por processos que uma vez deflagrados não podem ser revertidos ou controlados”. Espécies, que, segundo Paulo Buckup, presidente da Sociedade Brasileira de Ictiologia, e um grupo de ictiólogos apresentam “diversos problemas de identificação e de coleta”.
Sobre o desmatamento, Medeiros questiona a ausência no EIA de previsões para o futuro, o que seria possível com a aplicação de métodos de simulação amplamente utilizados hoje. Apenas a expectativa de implantação do projeto já resultou em fluxo migratório e em aceleração no processo de desmatamento da região em períodos anteriores. Além disso, a região está no arco do desmatamento, já apresentando extensas áreas degradadas e pouco produtivas.
Essas projeções de desmatamento são fundamentais sobretudo com a proximidade das Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs) das áreas que serão ocupadas pelas obras e pelo afluxo populacional. “No EIA existe uma inconsistência entre o que é discutido pelos especialistas de ecossistemas terrestres, que assumem que a floresta inundável será perdida, e a desconsideração destes efeitos na proposição de unidades de conservação como medidas compensatórias”, afirma Hermes Medeiros.
A justificativa para a ênfase dada pelo setor energético à fonte hidráulica para geração de energia se apóia no argumento da energia limpa. Ora, hidrelétricas emitem metano, um gás de efeito estufa com 25 vezes mais impacto sobre o aquecimento global por tonelada de gás do que o gás carbônico, de acordo com as atuais conversões do Painel Intergovernamental de Mudanças do Clima (IPCC).
Segundo Philip Fearnside, do Departamento de Ecologia do INPA, “os autores do EIA calculam as baixas emissões de metano das hidrelétricas por ignorar duas das principais rotas para emissão desse gás: a água que passa pelas turbinas e pelos vertedouros. O estudo considera apenas o metano emitido na superfície do próprio lago, e nem menciona as emissões das turbinas e vertedouros, o que é uma distorção ainda mais grave no caso de Belo Monte do que para outras barragens, uma vez que a área do reservatório de Belo Monte é relativamente pequena, porém, com grande volume de água passando pelas turbinas.”
Texto completo dos pareceres dos especialistas para baixar:
http://tinyurl.com/ykjplsu
Resumo Executivo dos pareceres para baixar:
http://tinyurl.com/yhsxfjw
Para mais informações:
Francisco Hernandez, cel: (19) 9646 8743
Email: paineldeespecialistas@gmail.com
Sônia Barbosa Magalhães
Email: paineldeespecialistas@gmail.com
Hermes Fonseca de Medeiros, Faculdade de Ciências Biológicas, da UFPA, tel: (93) 3515-0264 Email: hermes@ufpa.br
Renata Pinheiro, Movimento Xingu Vivo para Sempre, tel: (93) 3515 2406, cel: (93) 9172-9776
Email: xingu.vivo@yahoo.com.br
Marcelo Salazar, Instituto Socioambiental, tel: (93) 3515 1435 ou (61) 3035 5114, cel: (93) 8119 0809 - Email: marcelosalazar@socioambiental.org.br
Fonte: Glenn Switkes - Diretor, Programa na Amazônia/International Rivers
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