Por Elaine Tavares*
Apesar de toda a mobilização dos indígenas,
ribeirinhos e lutadores sociais, segue a construção da barragem de Belo Monte,
que deve inundar 668 quilômetros de mata e de vida.
O consórcio Norte, vencedor da licitação, envolve uma série de empresas
que vai desde a Eletronorte, construtoras como a Queiróz Galvão e Mendes
Junior, o grupo espanhol Iberdrola, até fundos de pensão da Petrobrás e do Banco
do Brasil. O que significa que é também o dinheiro dos trabalhadores que está
financiando o monstro. Pelo menos nove povos indígenas serão afetados
diretamente pela barragem assim como 210 sítios arqueológicos.
Mas, apesar de toda a carga de destruição desta mega usina que pretende
ser a terceira maior do mundo, ela não deve ser a única a ser construída na
região amazônica. Pelos menos 140 outros empreendimentos deste tipo estão
planejados para o espaço geográfico que hoje concentra 60% de todas as florestas
do mundo e que é responsável pelas variações climáticas de todo o planeta.
Destes 140 empreendimentos mais de 60 estão em solo brasileiro, especificamente
na floresta. As demais se espalham pelo Equador, Peru, Colômbia e Bolívia. Isso
se considerarmos só a América do Sul. Porque também estão sendo construídas
barragens nos países da América Central. Uma delas, a de Diquis, na Costa Rica,
que deve inundar mais de 12 mil hectares, também tem sido palco de muita luta,
já que deverá destruir pelo menos cinco etnias.
Segundo Jeffery Lopez, da Organização Dtsö, o projeto da Diquis é
antigo, mas, no passado, estava conectado com a expansão do sistema elétrico
nacional. Só que agora, a proposta já não é gerar energia para os
costarriquenhos, e sim para exportação. "Essa proposta tomou corpo nos
anos 90, quando os países da América Central entraram num processo de abertura
de suas economias. Foi o famigerado Plano Puebla/Panamá, inventado pelos
Estados Unidos para garantir a livre circulação de mercadorias". Dentro
desse plano, que foi alavancado pelo preposto dos EUA na América baixa, o
presidente Vicente Fox, do México, sob o comando do Banco Mundial, estava
contido a proposta da construção de uma série de obras destinadas ao
"desenvolvimento" da região, tais como estradas, oleodutos,
gasodutos, portos, aeroportos e hidrelétricas. Também foi embutido o
"amistoso" plano da construção de um sistema de integração
energética. Na verdade, os Estados Unidos estavam cimentando a base de um
corredor que poderá sugar a energia das águas da região amazônica, o petróleo
mexicano, além do petróleo venezuelano e o gás boliviano. É um gigantesco
projeto, iniciado em 2002 e que segue seu curso, sem que as gentes se dêem
conta do tamanho do estrago.
Como as lutas dos povos acontecem de forma fragmentada, conforme vão sendo implementadas as obras, fica bem difícil enxergar o todo. Mas, com um pouco de paciência se pode ir montando o mosaico.
Como as lutas dos povos acontecem de forma fragmentada, conforme vão sendo implementadas as obras, fica bem difícil enxergar o todo. Mas, com um pouco de paciência se pode ir montando o mosaico.
Hoje, está em andamento da América Central, com a participação de várias
multinacionais europeias, a construção de uma linha de mais de 1800 quilômetros
que atravessa todos os países até o México e dali outra linha segue para os
Estados Unidos. Assim, além das barragens, também as torres de transmissão
devem desalojar milhares de pessoas e provocar um verdadeiro desastre
ambiental. Dessa interconexão elétrica também deverá fazer parte Belo Monte e
todas as demais usinas que estão sendo construídas na Amazônia. Ou seja, o
caminho está feito para que a energia gerada seja exportada para quem dela precisa:
os Estados Unidos, seja no seu próprio território ou nos territórios onde
vicejam suas grandes empresas (as sugadoras de energia).
No Brasil, esse processo começou praticamente no mesmo momento que o
Plano Puebla Panamá (esse firmado em 2002). Foi durante o governo de Luís
Inácio, que assumiu em 2003, e nominou de Plano de Aceleração do Crescimento, o
PAC, o ambicioso projeto de desenvolvimento baseado na construção de obras de
infra-estrutura. Naqueles dias, a proposta do PAC apareceu para as gentes
brasileiras como um esperado sonho de crescimento e fartura, mas com o andar da
carruagem o que se viu foi o desenvolvimento da riqueza dos "de
sempre", sobrando para a maioria a fatura dos enormes custos sociais e
ambientais. Como o dinheiro jorrou rápido, as obras foram sendo feitas às
pressas, sem diálogo com as comunidades e muito menos sem o planejamento
adequado.
As barragens estão nesse contexto do PAC, que é a versão brasileira da
Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana (IIRSA),
e o governo não pensa, nem por um segundo, estancar essa loucura de obras a
qualquer custo. E aí é importante perceber que não se trata só de um desejo de
crescimento do país, como afirmam Luís Inácio e Dilma, mas sim um plano
meticulosamente traçado nas mesas do Banco Mundial, sob o olhar atendo do
governo estadunidense. Basta observar que a IIRSA – que reúne 12 países da
América do Sul num plano de "desenvolvimento" - é uma proposta
nascida nos EUA, e financiada pelo Bando Interamericano de Desenvolvimento.
Também vale destacar que a proposta de desenvolvimento embutida nesses projetos
não gera nem nunca gerou melhorias reais para a vida das gentes.
Além da usina de Belo Monte (capaz de gerar 11 mil megawatts), que
atualmente tem provocado bastante discussão, outro projeto grandioso é o das
duas grandes barragens nas corredeiras de Santo Antônio e do Jirau, no Rio
Madeira (6 mil megawatts), dentro do estado de Rondônia, Amazônia, que vai
alagar 271 quilômetros e que está sob o controle da Odebrecht e da Andrade
Gutierrez, entre outras. Isso sem contar as outras barragens médias e pequenas
(gerando de 3 mil a 200 megawatts cada uma), também planejadas para a região.
São tantas que até um olhar ingênuo, de alguém não especialista em energia, pode
suspeitar.
O argumento usado por aqueles que defendem as barragens é que esses
megawatts todos são necessários para que não aconteça outro apagão como os dos
anos de 2001 e 2002. Por isso acusam os que são contra de estarem impedindo o
desenvolvimento do país. Mas, como precaução e caldo de galinha não prejudicam
ninguém, é bom ficar de olho nesses argumentos e exigir a verdade. Quanto dessa
energia será realmente usado no Brasil? Quanto será exportado? Quem é que
verdadeiramente suga a energia? Essa pergunta precisa de uma resposta urgente e
correta, pois é mais do que certo de que não é o consumo doméstico. Não seriam
as grandes indústrias, que inclusive tem seus preços subsidiados? É o que diz o
Movimento dos Atingidos pelas Barragens, tendo já provado isso nos estudos que
realizou o ano passado para levar em frente uma campanha pela redução do custo
da energia. Quanto maior o empreendimento, menor é o custo da energia. Os
pobres são os que pagam mais. E quanto mais empobrecida a região, também mais
cara a energia. Agora imaginem o que pode acontecer com todo o sistema
privatizado? O certo é que lutar por justiça na distribuição e uso da energia
não é ser contra o desenvolvimento, e sim contra o roubo.
Não bastasse todo o prejuízo que essas obras causarão ao meio ambiente,
as comunidades indígenas estão sendo obrigadas a aceitar dinheiro como
compensação pela perda dos territórios, mesmo dizendo não aos projetos. Isso
vai contra a própria Constituição do país que determina a consulta aos povos
sobre qualquer intervenção nas suas terras. Mas, nada detém os tratores nem os
governantes. Ao que parece, nem o governo nem as empreiteiras estão preocupadas
com as gentes ou os impactos ambientais até porque consultores pagos pelo Banco
Mundial divulgam "estudos" alegando que não haverá qualquer problema.
Ou seja, conluio total.
Por outro lado estudos feitos fora do âmbito oficial são pródigos em
identificar problemas com relação ao processo migratório dos animais, extinção
de peixes, impactos nas comunidades indígenas, escassez alimentaria,
desestruturação comunitária, perda de identidade dos povos, perda da
biodiversidade. Isso sem contar o desarranjo climático que todas essas
intervenções poderão promover e que já se fazem sentir.
Boa parte dos especialistas em energia no Brasil insiste na defesa das
obras, e considera ingênuas as propostas que já existem, de modernização do
sistema existente, de ajuste nas perdas de transmissão ou da construção de
alternativas ambiental e humanamente equilibradas. Na verdade, corroboram a
sangria de bilhões de dólares que serão entregues aos conglomerados da
indústria da construção e o endividamento acelerado do país em nome de um
"desenvolvimento" altamente duvidoso.
O fato é que as obras estão em andamento, a Amazônia está sendo recortada,
devastada, inundada artificialmente e tudo isso para gerar riqueza bem longe
daqui. O grito de luta que se ouve contra Belo Monte deve ecoar também nas
demais localidades onde estão sendo construídas ou planejadas novas usinas e
barragens. São muitas e fazem parte de um plano só. É hora de as gentes
lutadoras, dos sindicatos, dos movimentos sociais, acordarem. Um pouco mais e
será tarde. Essa não é uma luta só dos que serão atingidos territorialmente.
Como o que acontece na Amazônia se reflete no resto do planeta, essa é uma luta
de todos.
Veja nesse mapa interativo onde estão as obras de barragens, quem são as
empresas que cuidam da destruição e os impactos humanos e ambientais que elas
causarão. www.dams-info.org
O site foi desenvolvido pela Fundação Proteger, da Argentina e pela
International Rivers, dos Estados Unidos, contando com o apoio financeiro da
ECOA, Brasil.
*Publicado em Povos Originários, via Diário Liberdade. Elaine Tavares é jornalista.