Nota Pública da Aliança Camponesa e Ambientalista em Defesa da Reforma Agrária e do Meio Ambiente
A história da ocupação das terras brasileiras pode ser resumida no beneficiamento das elites e na criminalização e marginalidade do povo camponês, comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas. As leis brasileiras, desde o período colonial, passando pela Lei de Terras, de 1850, sempre concederam terras a apadrinhados e privilegiados. A cobiça das elites agrárias pela aquisição de gigantescas extensões de terra multiplicou os grilos pelo interior do País, expulsando ou assassinando aqueles camponeses que ousaram se interpor no seu caminho. Esse processo deu ao Brasil a maior concentração fundiária do mundo.
Mesmo com tamanha opressão, milhões de excluídos, povos do campo e da floresta, conseguiram estabelecer-se nas áreas mais longínquas, nas entranhas do território brasileiro. Ali produzem, alimentam cidades vizinhas, tocam suas vidas, preservam a natureza. Os posseiros, como comumente são chamados, jamais conheceram o Estado brasileiro: foram relegados ao esquecimento e à invisibilidade.
Eis que, na aurora do século XXI, o Governo brasileiro “resolve” equacionar o problema fundiário da maior região do Brasil, a Amazônia Legal. Após um ano de disputas entre a Secretaria de Assuntos Estratégicos, Ministério do Desenvolvimento Agrário e governos estaduais do Norte, nasce a MP 458, em fevereiro de 2009. Em um processo sem consultas amplas e oficiais aos movimentos sociais e entidades nacionais e regionais, o Governo Federal busca apresentar uma “solução ágil e facilitada” para a regularização de 67 milhões de hectares que são de domínio da União.
Ao ir para o Congresso Nacional, a MP 458 se consolida como a plataforma unitária dos ruralistas. O relatório recém apresentado pelo deputado Asdrúbal Bentes (PMBD/PA) refina o texto da MP 458 com o único intuito de criar um imenso mercado de terras, regulado pelas elites agrárias. O retrato dos interesses dos latifundiários e dos grandes capitalistas pode ser facilmente visto em pontos cruciais, tais como:
- A MP 458, em claro abandono da Reforma Agrária, ao invés de exigir a imediata arrecadação pela União das terras acima de 15 módulos fiscais e sua destinação para o INCRA, designa estas áreas para licitação, com direito de preferência para o atual grileiro! Portanto, está consumada a regularização do grilo;
- O relatório muda a MP para permitir que sejam passíveis de regularização ocupações cujos titulares sejam pessoas jurídicas (empresários) e as explorações indiretas, conduzidas muitas vezes por “laranjas”. Extingue-se a exigência de que o beneficiário da regularização tenha como principal atividade econômica a exploração do imóvel. Assim, toda sorte de instituição financeira, industrial, comercial, gente rica de qualquer ramo da economia, que não tem no uso da terra a razão de ser de seu sustento, passa a ser beneficiária do processo facilitado e dos baixíssimos valores que estão estabelecidos pela MP. Na prática, uma única pessoa ou empresa poderá regularizar tantas posses quantas forem as que mantiver ocupadas com seus prepostos;
- O relatório permite que o beneficiário da regularização seja proprietário de outros imóveis rurais. Os 1.500 hectares regularizáveis, área por si só vastíssima, se comparada com os padrões fundiários internacionais, poderão vir a somar-se com as áreas que o “ocupante” já possui, na qualidade de proprietário, contribuindo para aumentar a concentração fundiária, já escandalosa no país;
- O relatório retira a inalienabilidade e inacessibilidade por 10 anos, permitindo a venda imediata das áreas assim que forem regularizadas. Permite, ainda, que seja regularizável o ocupante que comprove posse por apenas 1 (um) ano, podendo ser computado o período de ocupação de “antecessor”. Mais uma vez, é a festa do grileiro, para quem a posse agrária é apenas uma curta etapa para a consumação de seu objetivo final: a venda da terra a terceiro e o lucro com a transação;
- A recuperação do passivo ambiental é toda postergada. Nada é exigido previamente à regularização. As comunidades tradicionais não têm seus direitos assegurados. As práticas extrativistas, como das quebradeiras de coco babaçu, estão ameaçadas, posto que não se prevê a regularização com cláusula de servidão administrativa em seu benefício.
É preciso se contrapor ao modelo nefasto de apropriação do patrimônio público que sempre pautou a legislação agrária no país e que ameaça fazê-lo novamente. O latifúndio é o maior câncer da sociedade brasileira, está na raiz de seus desequilíbrios estruturais, e não se pode permitir que, em vez de ser combatido, venha a receber um novo impulso.
Diante dessa situação assombrosa, de uma proposta de legislação que reforça o caráter concentrador de nossa malha fundiária, e que se constitui num chamado geral para ocupação desenfreada, predatória e criminosa da Amazônia, os movimentos sociais e entidades da sociedade civil organizada que estão unidos na Aliança Camponesa e Ambientalista em Defesa da Reforma Agrária e do Meio Ambiente exigem a imediata retirada da MP 458 do Congresso Nacional e sua transformação em Projeto de Lei, única medida capaz de assegurar o amplo e imprescindível debate com as comunidades locais, movimentos e entidades regionais e nacionais, a quem de fato interessa a ocupação e utilização do território amazônico em bases sustentáveis e de acordo com a função social da propriedade da terra.
Aliança Camponesa e Ambientalista em Defesa da Reforma Agrária e do Meio Ambiente
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