segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Amazônias, de Anna e Chico

Cândido Neto da Cunha*

O ano de 1988 para a Amazônia poderia ser considerado como revolucionário. Não foi um 1917 numa Rússia czarista, mas este ano deu novos significados para Amazônia, uma virada sobre aquilo que comumente se percebia sobre a última grande floresta do mundo. Para isto, dois fatos totalmente desconexos, com dois personagens desconhecidos fora do meio social de atuação de cada um deles, transformariam radicalmente toda a percepção que o Brasil e o mundo tinham sobre esta região.

Amazônia de Anna

A cidade de Monte Alegre no Oeste do Pará, na margem esquerda do rio Amazonas, guarda na sua memória o processo de dominação lusitana sobre um território que a princípio pertenceria à Espanha. Seus casarões são testemunhas da estratégia geopolítica portuguesa de tomar para si esta vasta área com a dispersão de vilas, povoados e fortalezas. Monte Alegre possui ainda uma grande colônia de cearenses, legado da migração nos tempos da borracha, e uma das primeiras colônias de japoneses que imigraram no início do século passado ao Brasil. A introdução da juta e da pimenta-do-reino na Amazônia são heranças destes japoneses. Em 1927, estabelece-se em Monte Alegre o primeiro grande projeto de colonização estatal na região, prelúdio da dita “ocupação” da Amazônia.

Mas Monte Alegre guarda ainda registros imemoriais que mudariam tudo aquilo que havia como certeza sobre os primeiros povos das Américas e a forma de ocupação de suas florestas.

A presença humana no continente americano sempre foi um tema controverso. Achados arqueológicos de até então reforçavam a teoria que a presença humana na América do Sul derivava de migrações oriundas da América do Norte. A Amazônia ocupada pelos indígenas teria sido povoada originalmente por povos que descendiam das civilizações andinas e deles se apartaram e, ao contrário dos incas, por exemplo, não emergiram nesta terra nenhuma “grande civilização” ou “organização social das mais complexas”, apenas se dispersando sobre a grande área.

Seriam povos nômades de ocupação mais recente que os povos da América do Norte ou dos Andes, que se estabeleceram na região e cuja "inóspita" floreta ao mesmo tempo em que impedia o desenvolvimento de qualquer atividade duradoura possuía uma riqueza natural capaz de fornecer, ainda que sazonalmente, as condições de sobrevivência destes “poucos” agrupamentos humanos. Portanto, seriam sociedades totalmente dependentes da coleta, da caça e da pesca, com uma insipiente e rudimentar agricultura cujo auge tecnológico seria o sistema de corte e queima.

Estas visões sobre as civilizações primordiais carregavam consigo idéias pré-concebidas sobre as sociedades existentes na floresta. Desta forma, um padrão etapista ou “evolucionista” se moldou para explicar a ocupação original do território.

Mas em 1988, certa bisneta do ex-presidente estadunidense Theodore Roosevelt fez a primeira visita à gruta da Pedra Pintada, na Serra da Lua, em Monte Alegre. A arqueóloga norte-americana Anna Roosevelt lera sobre achados e pinturas rupestres e avaliou que naquele local haveria um ineditismo arqueológico. Anna, professora da Universidade de Illinois em Chicago, coordenava um grande projeto arqueológico na bacia amazônica. As pesquisas promovidas por ela em achados na ilha do Marajó já haviam apontado que ao contrário do que se pensava, grupos sociais enormes haviam se fixado na Amazônia e sociedades complexas haviam se estabelecido nas proximidades da foz rio Amazonas. Mas na gruta da Pedra Pintada havia algo novo.

Enquanto nas paredes da caverna havia pinturas artísticas sobre o modo de vida de grupos que se estabeleceram na região e até um possível calendário, o solo da gruta revelou, por meio de métodos de datação, a presença de sucessivas sociedades, que haviam se fixado originalmente há pelo menos 10 mil anos na Amazônia. Esta teoria iria de encontro à tese do “homem vindo do norte” e demonstrava uma ocupação ainda mais longínqua, com sociedades numerosas que possivelmente migraram do Pacífico e não da América do Norte. E mais: a presença humana na Amazônia há pelo menos 10 mil anos significava que a “floresta intocável” era na verdade outra coisa.

A teoria de Anna Roosevelt não era inédita e sua contestação permanece até os dias de hoje, mesmo com novos achados. Outras linhas de pesquisa como as realizadas na região de Sete Cidades no Piauí desabilitam as teses do homem vindo do Norte. Mas sem dúvida, a Pedra Pintada deu uma comprovação científica à tese do ineditismo humano na Amazônia – os paleoindígenas. Para Anna, as pinturas na Pedra da Lua são “... algumas das mais antigas já identificadas no Novo Mundo e parte do estágio Paleolítico da arte rupestre”(1). Além disto, sua tese mostrou o quanto estavam ofuscados por concepções pré-deterministas certos ramos da arqueologia, da antropologia, das teorias agrícolas e da sociologia. Saberes milenares e desconhecidos pela ciência, sinais da presença humana e de sociedades haviam sido ignorados, apesar de estarem por toda parte. Uma arqueologia de certa forma condicionada pelo presente havia sido obscurecida ao não perceber estes sinais. E o pior, esta ignorância tivera sérias repercussões sociais e políticas que talvez Anna Roosevelt não esperasse com sua tese despertar.
Pensar que a Amazônia tivera uma população significativa por milhares de anos e ainda permanecia como floresta era uma afronta para as idéias de “paraíso perdido a ser protegido” em pleno florescimento dos movimentos ecológicos, em especial a linha conservacionista. Afrontava ainda e de forma contrária as idéias de uma linha de desenvolvimento único e inevitável, cuja floresta, mais dia ou menos dia, tombaria. Como continuar defendendo que a Amazônia deveria permanecer intocável se ela já não era a milhares de anos? E mais, a Amazônia já não era uma “terra sem gente” há 10.000 anos, pelo menos.

As pesquisas de Anna Roosevelt continuaram pelos anos noventa e até hoje a arqueóloga empreende constantes viagens ao Baixo Amazonas. E outros pesquisadores, talvez iluminados pela tese das “civilizações da floresta” passaram a apontar sinais da presença pré-histórica por toda a parte. Estavam nas “terras pretas de índios”, gigantescos solos orgânicos oriundos da ocupação humana em plena floresta úmida, sob intenso intemperismo. Achados encontrados sob qualquer alicerce de edificações construídas na cidade de Santarém revelaram que os Tapajós que os portugueses encontraram por aqui já não eram os mesmos que produziram aquelas peças. Estradas com pontes sofisticadas no alto Xingu revelaram intenso tráfego por aquela região. Castanhais por toda a região revelaram que ao contrário de matas virgens, ali existira imensos bosques florestais com dispersão antrópica.

Portanto, os territórios indígenas eram milenares. Era o resultado de ações que transformaram a floresta.

Amazônia de Chico

A transformação da seringueira em fonte de matéria-prima deu-se com a revolução industrial e a necessidade de uso da borracha como produto beneficiado. Em várias partes da Amazônia, o extrativismo da borracha tornou-se uma atividade pujante economicamente. A estratégia geopolítica de “ocupação” do território promoveu intensas migrações de nordestinos para várias regiões da Amazônia para extração do látex. Essa mão-de-obra barata (semi-escrava) era necessária para a formação dos novos territórios: os seringais.

Xapuri, no Acre, está na desombocadura do rio que lhe deu nome, com o Rio Acre. Essa pequena cidade foi testemunha do apogeu e declínio da economia extrativista, com ricas famílias de comerciantes de origem sírio-libanesa, riqueza esta oriunda da superexploração do trabalho dos migrantes que iriam construir os territórios dos seringais.

Com o declínio macroeconômico da atividade, os seringueiros passaram a viver e a ser reproduzir em “territórios livres” do ponto de vista do controle territorial. Porém, pouca décadas depois surge uma nova e constante ameaça da perda da terra pelo avanço da nova fronteira capitalista na região, agora ligada à pecuária extensiva e subsidiada por incentivos fiscais dados pelo Estado.
Elder Andrade de Paula e Silvio Simione da Silva(1) situaram as lutas dos seringueiros no Acre e em outras regiões de fronteira na Amazônia como uma disputa entre sujeitos sociais da “terra de trabalho” de um lado e a “terra de negócios” de outro. Portanto, uma luta agrária e classista.

Em meados dos anos setenta, iniciou-se no Acre uma forma de resistência chamada de "empate". “Realizados durante o verão, os empates são ações coletivas que visam impedir (ou ‘empatar’) a ação dos peões encarregados da derrubada. Um grupo de cem a duzentas pessoas (homens, mulheres e crianças) dirige-se pacificamente aos acampamentos e convence os peões a abandonar as motosseras” (Aliança dos Povos da Floresta, 1989 – (2)).

E de fato a luta inicial puramente local e pacífica evoluiu para conflitos cada vez mais violentos, com o assassinato de lideranças seringueiras e reações organizadas que resultariam em forte repressão ao movimento. O isolamento físico da região e o desconhecimento generalizado que o país e o mundo tinham sobre o conflito também forçaram o movimento dos seringueiros a buscar interlocução nacional e internacional.

Os empates agora eram acompanhados de divulgação, de encontros nacionais e de uma organização que resultou na criação do Conselho Nacional dos Seringueiros e na “Aliança dos Povos da Floresta”.

A morte de Chico Mendes em 1988 significou que na luta de concepções territoriais distintas não estava em disputa “ecologistas” contra “desenvolvimentistas”, mas os povos da floresta contra a expansão capitalista sobre a Amazônia. Não eram homens “bonzinhos” e “conscientes” agarrados misticamente a árvores contra “bárbaros” pecuaristas ávidos por lucrar em cima da floresta derrubada. Eram campesinos florestais contra capitalistas; trabalhadores autônomos de antigos seringais contra a “Sociedade Anônima”; os “excluídos” e esquecidos pelo Estado contra os incentivos fiscais deste mesmo Estado. Portanto, uma luta de classes.

A transformação de Chico Mendes em “mártir da ecologia” serviu de alerta para o que vinha acontecendo em regiões remotas do Brasil e sem dúvida deu um novo olhar para a Amazônia. Contudo, não é forçoso dizer que houve um esvaziamento do conteúdo classista da luta, em especial com a espetacularização de sua morte ao mesmo tempo em que outros aspectos da luta eram sintomaticamente obscurecidos.

Alguns “ecologistas” que tratam a questão ambiental como uma mera relação de consumo, certas ONGs e o próprio Estado trataram logo de absorver as lições das intensas lutas dos seringueiros e as deram uma outra conotação. Políticas assistencialistas, criação de entidades “representativas”, “resgate da cidadania através de mini-projetos produtivos” deram a tônica após a morte de Chico Mendes em toda a Amazônia. Dezenas de Unidades de Conservação foram criadas, criaram as Reservas Extrativistas e os Projetos de Assentamentos Agroextrativistas. Fez-se um filme, documentários, shows de Sting e até uma linha de cosméticos à base de castanha-do-pará. O capital e o Estado apoderaram-se da luta e lhe deram uma nova conotação: a institucionalização e o espetáculo da mercadoria.

Posteriormente, as explosivas lutas camponesas no Acre foram canalizadas pelo Partido dos Trabalhadores, que soube também lograr eleitoralmente com o caso. Embora Chico Mendes fosse um filiado do PT, os pontos políticos defendidos pelo Conselho Nacional de Seringueiros possuía um conteúdo profundamente classista. Hoje, o CNS é completamente diferente, é mais conhecido por participar ativamente dos espaços do Estado do que por formas radicalizadas de luta ou pela capacidade de aglutinação das lutas em curso. Quanto ao PT, a história também não foi muito diferente.

Ironicamente, o próprio Partido dos Trabalhadores e Marina Silva (“herdeira de Chico Mendes”) patrocinaram recentemente o esfacelamento do Ibama (surgido logo após a morte de Mendes), promovem as concessões florestais para grandes grupos madeireiros sob o astuto título de “manter a floresta em pé” e ainda criaram um órgão com o insuspeito nome de “Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade”.

Importante ressaltar que o movimento dos seringueiros sempre buscou a interlocução com o movimento sindical constituído e com o Estado. Aliás, foi esse movimento a negar o modelo vigente de assentamentos do Incra e a fazer o primeiro desenho do que seria a proposta de Reservas Extrativistas e da regularização fundiária coletiva onde o Estado permanece com o domínio de áreas e as populações passam a ter direito ao usufruto de recursos naturais, algo que o movimento buscou nos direitos assegurados aos indígenas. Terra como direito e não como mercadoria. Portanto, era um movimento de luta política e sindical totalmente atual numa Amazônia de “Aerfas” e “Terras Legais”.

A intensa luta de classes que ocorre atualmente na Amazônia ainda não tem o nível de articulação que alcançou os seringueiros do Acre com o desenvolvimento do movimento, mas sementes da resistência estão brotando por toda parte, independentemente e muitas vezes contrárias a organizações constituídas, que muitas vezes estão mais preocupadas em participar de projetos de fachada social e cunho puramente assistencialista. Para estas entidades já não se trata da luta social que estaria “ultrapassada”. Modernos seriam os projetos de “resgate da cidadania”, onde a idéia de conflito ou luta de classes é substituída pela “colaboração”.

Amazônias, de Anna e Chico
A luta segue. Não foi Chico Mendes a primeira vítima da luta pela terra na Amazônia e nem foi o último. Os conflitos em outras regiões da Amazônia já estamparam e estampariam outras capas de jornais. Assim como não foi Anna Roosevelt a descobrir a gruta da Pedra Pintada. Ela sequer foi a primeira pesquisadora a está pó lá. Mas, a ida de Ana Roosevelt a Monte Alegre e a morte de Chico Mendes em Xapuri, ambos em 1988, superariam a arqueologia e a defesa da Reforma Agrária.

Para além de colocar Monte Alegre e Xapuri no mapa-múndi, Anna e Chico, no ano de 1988, colocaram em curso uma nova visão sobre a Amazônia de ontem e de hoje.

No passado, aqui não fora uma floresta virgem. Fora habitada por populações enormes, em sociedades de ceramistas e caçadores, por povos com técnicas agrícolas até hoje não completamente explicadas e capazes de se representar artisticamente.

No presente, não somente árvores seculares estavam tombando com o desmatamento. Havia pessoas embaixo destas árvores como houvera no passado. E eram pessoas que dependiam diretamente desta floresta para suas existências material e cultural e a defendia não como uma causa ecológica, mas como critério para a sua existência.

Vinte anos depois, alguns dirão que Chico Mendes está nas Resexs e que o trabalho de Ana Roosevelt possibilita chegarmos à conclusão que a floresta está aí para ser usada. Mas o significado do seu trabalho para mim não é este. Devido a ambos pode-se afirmar que essa floresta só existe porque populações milenares a usaram e a transformaram, sem destruí-la. Esta população, por mais que culturalmente seja diferente, ainda existe e é ela a maior responsável pela manutenção desta floresta.

As civilizações da floresta de Anna estão aí por toda parte. Nas terras pretas de índio, nas cerâmicas, em manchas de cerradas em plena floresta equatorial, na flutuação da fauna, nos sítios ainda a serem descobertos.

Estes vestígios estão sob enorme perigo de serem destruídos sem que a seu completo significado seja conhecido. Para se ter idéia a Companhia Docas do Pará e a multinacional Cargill patrocinaram a destruição de um sítio arqueológico em Santarém com a construção de um porto para exportação de soja. Para Anna Roosevelt a destruição deste sítio é “... uma lacuna na pré-história da Amazônia”(4).

A luta de Chico também está por aí. Nos índios do rio Xingu contra os projetos hidroelétricos, nos ribeirinhos do Alto Tapajós e do rio Uruará na defesa de seus territórios, nos quilombolas de Oriximiná contra as concessões florestais, em Juruti Velhos contra a mineradora Alcoa... São lutas que estão sujeitas às armadilhas da luta de classes: cooptação, desâmino, criminalização. Mas antes de tudo demonstram que a floresta vive e assim como 1917, outros outubros virão.


*Eng. Agrônomo e diretor da Associação dos Servidores da Reforma Agrária/Oeste do Pará – Assera. Com agradecimento pelas sugestões do grande pesquisador C.L do Anjos e ao Eng. Agrônomo F.E.A. Bezerra pelas pertinentes correções ortográficas.

Referências:
(1) Dieguez, Flávio & Silva, Carlos Eduardo Lins. A civilização perdida da Amazônia. Revista Superinteressante de 01 de junho de 1996, Editora Abril.

(2) Paula, Elder Andrade de & Silva, Silvio Simione da. Floresta! Para que ter quero?: Da territorialização camponesa a nova territorialidade do capital. (mimeo)

(3) Aliança dos Povos da Floresta. Disponível em www.senado.gov.br/web/marinasi/chmende2.htm, acessado em 10 de dezembro de 2008.

(4) Ângelo, Cláudio. Americana tem nova tese sobre “As Amazonas”. Disponível em http://www.nelsi.sadeck.oi.com.br/noticia04.html, acessado em 09 de dezembro de 2008.
Comentários
4 Comentários

4 comentários:

Arnaldo José disse...

ESPETACULAR ! ! ! ! ! !

ansarah disse...

Muito bom, Cândido!!!

Belíssimo artigo!

Cirino Lobo dos Anjos disse...

Parabéns!

Mery Cipriano disse...

Poxa, Cândido, demorei a ler. Mas foi uma leitura muito inspiradora.
O seu texto está ótimo!