Por Bárbara Mengardo*
Os
moradores de dez comunidade quilombolas da região de Abaetetuba, a 55
quilômetros de Belém, obtiveram uma antecipação de tutela (espécie de liminar)
que suspende uma cobrança de R$ 15 milhões pela Receita Federal. Depois de
lutarem por mais de dez anos e conseguirem a titularidade coletiva de uma área
de 11 mil hectares, por meio de um registro no Instituto de Terras do Pará
(Iterpa), os descendentes de escravos foram surpreendidos, no ano passado, com
uma suposta dívida de Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR).
Os
moradores dessas comunidades – formadas por cerca de mil famílias – vivem com
menos de um salário mínimo por mês. A extração do açaí e da mandioca, a pesca e
a produção de artesanato em cerâmica são as principais fontes de renda. Com
poucos recursos e por considerarem injusta a cobrança, os quilombolas decidiram
ajuizar uma ação contra a Fazenda Nacional, que corre na 17ª Vara Cível Federal
do Distrito Federal.
“Diziam
que o governo federal tem uma dívida social conosco. Nós nos empenhamos para
obter o título, e tivemos uma decepção. Hoje, somos a associação quilombola com
a maior dívida do Brasil”, diz Edilson da Costa, coordenador da Associação das
Comunidades Remanescentes de Quilombos de Abaetetuba (Arquia), que detém o
título de propriedade da área.
Na
decisão favorável aos quilombolas, proferida no dia 3, o juiz substituto Flávio
Marcelo Sérvio Borges entende que o território em questão difere em muitos
pontos da propriedade rural citada no artigo 153, inciso VI, da Constituição,
sobre a qual poderia incidir o ITR. Uma das diferenças é a maneira como a terra
foi adquirida. “A lei civil trata de uma propriedade que se adquire pelos meios
tradicionais que contempla: compra e venda, doação privada e herança”, diz
Borges na decisão, acrescentando que, no caso, os descendentes de escravos
receberam a titularidade da terra por meio do Estado. “Surge plausível afirmar
que a situação fático-jurídica do remanescente de quilombo de Abaetetuba não se
afina com o conceito posto no artigo 153, VI, da Constituição, não sendo, pois,
fato gerador do ITR.”
O
juiz também considerou que o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT), que foi regulamentado pelo Decreto nº 4.887, de 2003,
trata a propriedade quilombola como coletiva, enquanto o Código Civil aborda a
propriedade individual. “A propriedade civil é ligada à pessoa física ou
jurídica, e no caso dos quilombolas, que são uma comunidade, o direito é
coletivo”, explica Alexandre Moura, do escritório Bichara, Barata & Costa
Advogados, que está defendendo os quilombolas gratuitamente.
Para
Luiz Gustavo Bichara, também do Bichara, Barata & Costa Advogados, é uma
contradição o fato de o Estado cobrar impostos de uma terra que, de acordo com
a norma que a regula, não pode ser vendida ou penhorada. “Se eles não podem
vender ou penhorar, é claro que a União não pode fazer isso. A União está dando
com uma mão e tirando com a outra”, diz.
Não
foi acatada pelo juiz, porém, a alegação feita na petição inicial de que a
terra dos quilombolas poderia ser comparada a uma reserva ambiental, pois não
podem devastar a vegetação local. “Aquela área não é um latifúndio. É uma área
de proteção a uma população, como um parque ou uma reserva indígena”, afirma
Bichara.
O
argumento do Fisco é que a lei do ITR (Lei nº 9.393, de 1996) não inclui as
terras quilombolas entre aquelas isentas do imposto. No processo de execução, a
Fazenda pede inclusive a penhora de bens das comunidades – no caso, a própria
terra.
Outra
comunidade quilombola do Pará, de Oriximiná, também enfrenta situação
semelhante. Lá os moradores possuem uma dívida de R$ 2 milhões pelo não
pagamento de ITR, em valores não atualizados.
A
advogada Carolina Bellinger, da Comissão Pró-Índio de São Paulo, diz que a
organização não conhece nenhuma comunidade quilombola que pague o ITR. “Após
descobrirmos a Abaetetuba e Oriximiná, consultamos 40 associações quilombolas
que já possuíam título de suas terras. Oitenta por cento delas sequer sabiam da
existência do imposto”, diz.
Carolina
afirma que atualmente 193 comunidades quilombolas possuem títulos de suas
terras, mas o movimento de descendentes de escravos estima que existam mais de
três mil comunidades em todo o país. Procurada pelo Valor, a Procuradoria-
Geral da Fazenda Nacional (PGFN) informou, por meio de sua assessoria de
imprensa, que não vai se manifestar sobre o caso.
*Fonte: Valor Econômico