quarta-feira, 16 de maio de 2012

ITR em terras quilombolas: Cobrança milionária é suspensa


Por Bárbara Mengardo*

Os moradores de dez comunidade quilombolas da região de Abaetetuba, a 55 quilômetros de Belém, obtiveram uma antecipação de tutela (espécie de liminar) que suspende uma cobrança de R$ 15 milhões pela Receita Federal. Depois de lutarem por mais de dez anos e conseguirem a titularidade coletiva de uma área de 11 mil hectares, por meio de um registro no Instituto de Terras do Pará (Iterpa), os descendentes de escravos foram surpreendidos, no ano passado, com uma suposta dívida de Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR).

Os moradores dessas comunidades – formadas por cerca de mil famílias – vivem com menos de um salário mínimo por mês. A extração do açaí e da mandioca, a pesca e a produção de artesanato em cerâmica são as principais fontes de renda. Com poucos recursos e por considerarem injusta a cobrança, os quilombolas decidiram ajuizar uma ação contra a Fazenda Nacional, que corre na 17ª Vara Cível Federal do Distrito Federal.

“Diziam que o governo federal tem uma dívida social conosco. Nós nos empenhamos para obter o título, e tivemos uma decepção. Hoje, somos a associação quilombola com a maior dívida do Brasil”, diz Edilson da Costa, coordenador da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos de Abaetetuba (Arquia), que detém o título de propriedade da área.

Na decisão favorável aos quilombolas, proferida no dia 3, o juiz substituto Flávio Marcelo Sérvio Borges entende que o território em questão difere em muitos pontos da propriedade rural citada no artigo 153, inciso VI, da Constituição, sobre a qual poderia incidir o ITR. Uma das diferenças é a maneira como a terra foi adquirida. “A lei civil trata de uma propriedade que se adquire pelos meios tradicionais que contempla: compra e venda, doação privada e herança”, diz Borges na decisão, acrescentando que, no caso, os descendentes de escravos receberam a titularidade da terra por meio do Estado. “Surge plausível afirmar que a situação fático-jurídica do remanescente de quilombo de Abaetetuba não se afina com o conceito posto no artigo 153, VI, da Constituição, não sendo, pois, fato gerador do ITR.”

O juiz também considerou que o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que foi regulamentado pelo Decreto nº 4.887, de 2003, trata a propriedade quilombola como coletiva, enquanto o Código Civil aborda a propriedade individual. “A propriedade civil é ligada à pessoa física ou jurídica, e no caso dos quilombolas, que são uma comunidade, o direito é coletivo”, explica Alexandre Moura, do escritório Bichara, Barata & Costa Advogados, que está defendendo os quilombolas gratuitamente.

Para Luiz Gustavo Bichara, também do Bichara, Barata & Costa Advogados, é uma contradição o fato de o Estado cobrar impostos de uma terra que, de acordo com a norma que a regula, não pode ser vendida ou penhorada. “Se eles não podem vender ou penhorar, é claro que a União não pode fazer isso. A União está dando com uma mão e tirando com a outra”, diz.

Não foi acatada pelo juiz, porém, a alegação feita na petição inicial de que a terra dos quilombolas poderia ser comparada a uma reserva ambiental, pois não podem devastar a vegetação local. “Aquela área não é um latifúndio. É uma área de proteção a uma população, como um parque ou uma reserva indígena”, afirma Bichara.

O argumento do Fisco é que a lei do ITR (Lei nº 9.393, de 1996) não inclui as terras quilombolas entre aquelas isentas do imposto. No processo de execução, a Fazenda pede inclusive a penhora de bens das comunidades – no caso, a própria terra.

Outra comunidade quilombola do Pará, de Oriximiná, também enfrenta situação semelhante. Lá os moradores possuem uma dívida de R$ 2 milhões pelo não pagamento de ITR, em valores não atualizados.

A advogada Carolina Bellinger, da Comissão Pró-Índio de São Paulo, diz que a organização não conhece nenhuma comunidade quilombola que pague o ITR. “Após descobrirmos a Abaetetuba e Oriximiná, consultamos 40 associações quilombolas que já possuíam título de suas terras. Oitenta por cento delas sequer sabiam da existência do imposto”, diz.
Carolina afirma que atualmente 193 comunidades quilombolas possuem títulos de suas terras, mas o movimento de descendentes de escravos estima que existam mais de três mil comunidades em todo o país. Procurada pelo Valor, a Procuradoria- Geral da Fazenda Nacional (PGFN) informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não vai se manifestar sobre o caso.

*Fonte: Valor Econômico

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