As reservas indígenas do país poderão ter suas portas abertas para
a exploração de recursos minerais, uma prática que hoje é proibida por lei. O
tema polêmico ficou no limbo durante quase duas décadas, mas voltou à baila no
início deste ano, com a retomada pelo Congresso do Projeto de Lei 1.610, que
trata da mineração em terras indígenas. Uma Comissão Especial foi criada na
Câmara para tratar exclusivamente do assunto, em discussão na Casa desde 1996.
A previsão é que um substitutivo do texto original seja votado e encaminhado ao
Senado na primeira quinzena de julho, para depois seguir à sansão presidencial.
A proposta, se for adiante tal como está, tem tudo para alterar radicalmente a
fotografia da exploração mineral no país.
Pelas novas regras, a entrada de empresas nas terras indígenas
fica condicionada ao pagamento de royalties aos índios que tiverem áreas
afetadas pela lavra. A empresa que explora o minério tem de desembolsar aos
índios algo entre 2% e 3% da receita bruta aferida no negócio durante todo o
tempo de exploração. Para administrar esse dinheiro, será criado um fundo específico
de captação. A gestão dos recursos e dos repasses que serão feitos aos índios
fica nas mãos de um conselho administrativo formado por representantes do
governo, da Fundação Nacional do Índio (Funai), do Ministério Público Federal e
da população indígena afetada.]
A proposta em andamento também altera o modelo de autorização para
exploração mineral. Hoje, a permissão de lavra é dada pelo Departamento
Nacional de Produção Mineral (DNPM) ao primeiro empreendedor que apresentar o
estudo técnico e o pedido de exploração da área, isto é, o critério é a ordem
de chegada. No caso das reservas indígenas, essa exploração ficaria
condicionada à realização de leilões. A empresa interessada teria de ganhar uma
concessão para explorar a região, a qual teria a sua viabilidade exploratória
atestada por levantamentos preliminares feitos pelo governo. A licitação das
áreas só ocorreria após a realização de audiências com as comunidades indígenas
e a emissão de laudos antropológico, ambiental e mineral, além da emissão da
Licença Ambiental Prévia concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Outro ponto polêmico trata dos critérios de decisão sobre as áreas
que poderiam ser ou não exploradas. Ficou estabelecido que terras indígenas
ocupadas por aldeias que nunca foram contatadas devem ser mantidas como estão,
sem nenhum tipo de ação exploratória. Em todas as demais, porém, a palavra
final sobre a possibilidade de execução de lavra seria dada pelo Palácio do
Planalto. Na prática, significa que os índios sempre seriam ouvidos e teriam
espaço para apresentar seus pedidos de compensação para liberar a terra, mas
não teriam poder de veto sobre a execução de um projeto.
A Funai apoia a proposta. “Acompanhamos o
assunto de perto e esperamos que essa solução saia neste ano”, diz Aloysio
Guapindaia, diretor do Departamento de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável
da Funai.
Mesmo com as resistências que o assunto enfrenta, o relator do
projeto original, senador Romero Jucá (PMDB), afirma que a proposta tem tudo
para ser aprovada já no próximo semestre. “O projeto está maduro, o governo
acompanha esse assunto de perto e o Ministério de Minas e Energia defende a
regulamentação”, diz.
Para o relator do projeto atual na Câmara, deputado federal Édio
Lopes (PMDB-RR), a proposta conseguiu alcançar um “ponto de equilíbrio” entre o
interesse nacional e as demandas indígenas. “Pela primeira vez, temos uma
grande possibilidade de aprovarmos essa matéria. Está na hora de regularizar a
mineração em terras indígenas. O país não pode mais prescindir desse potencial,
sobretudo no arco Norte do país”, comenta.
Nesta semana, a Comissão Especial de Mineração da Câmara foi até
São Gabriel da Cachoeira (AM), para realizar um seminário sobre o assunto com a
comunidade indígena. No dia 11, os parlamentares estarão no município de
Presidente Figueiredo, também no Amazonas. No fim de semana, seguirão em viagem
até o Canadá, país onde o modelo de exploração de terras indígenas mediante o
pagamento de royalty já é aplicado há muito tempo. A ideia, segundo o deputado
Padre Tom (PT-RO), é colher detalhes do modelo canadense para aprimorar a
proposta do país.
O Brasil tem hoje 608 terras indígenas demarcadas, áreas que somam
109 milhões de hectares, o equivalente a 13% do território nacional. Desse
total, 98% estão concentrados na chamada Amazônia Legal, área que envolve os
Estados do Acre, Amazonas, Roraima, Pará, Amapá, Tocantins, Mato Grosso,
Rondônia e parte do Maranhão.
O Estado de Roraima, por exemplo, tem quase metade de seu
território dentro de reserva indígena. No Amazonas, essa fatia é de 20%. O
censo demográfico realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) aponta que 817 mil pessoas se declararam indígenas, o que
equivale a 0,42% da população do país. O número superou em 11% o volume
registrado no censo de 2000.
O
interesse do Ministério de Minas e Energia (MME) em destravar o acesso às
reservas indígenas não está restrito à exploração de recursos minerais. Os
grandes rios da Amazônia, região que concentra 98% das terras indígenas do
país, são a próxima fronteira de geração de energia elétrica do país.
Oficialmente, o MME tem evitado abordar o assunto. Procurado pelo Valor, o
ministério não retornou ao pedido de entrevista. A Empresa de Pesquisa
Energética (EPE), no entanto, tem batido na tecla sobre a necessidade de
acelerar a liberação de projetos de geração que impactem terras indígenas. O
modelo analisado seria parecido ao proposto para a exploração mineral, ou seja,
o pagamento de royalties para aldeias que tiverem terras invadidas por
barragens de hidrelétricas.
A Constituição Federal, em seu artigo 231, já prevê que o
“aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a
pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser
efetivados com autorização do Congresso Nacional”.
“Está
na Constituição, mas falta a lei que regulamente esse artigo”, diz Aloysio Guapindaia,
diretor do Departamento de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai.
“Pelas regras atuais, não liberamos nenhuma usina que atinja terra indígena.”
Parlamentares
chegaram a analisar a possibilidade de que a exploração dos rios para geração
de energia fosse incluída no Projeto de Lei 1.610/96, mas segundo o senador
Romero Jucá (PMDB), relator do projeto original, a orientação final foi de que
esse tema fosse tratado em um PL à parte. “É mais viável não misturar as coisas. A
inclusão das hidrelétricas poderia atrasar ainda mais a tramitação do projeto
de mineração”, comenta.
O
Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), está fazendo um levantamento sobre as obras de
infraestrutura que afetam as reservas indígenas. Segundo Cleber Buzatto,
secretário-executivo do Cimi, há cerca de 450 empreendimentos em andamento ou
projetadas no país que atingem de alguma forma as reservas. A maioria dessas
obras está ligada a projetos de mineração e geração de energia.
Fonte: Valor Econômico