por Roberto Leher*
Como se fosse um ato burocrático e corriqueiro, um pequeno (mas capitalizado) grupo de professores, desconhecidos da imensa maioria de docentes que compõe as universidades federais, publicou em alguns jornais um edital convocando uma Assembléia de transformação da ONG que assessora o MEC em um “sindicato”. Se vivêssemos em um contexto jurídico de pluralismo sindical, infelizmente inexistente em virtude de dispositivo constitucional, a iniciativa estaria circunscrita ao debate político na base e dado a forma de convocatória passaria despercebido. Mas a convocação para que a referida assembléia ocorresse na sede nacional da CUT em São Paulo, um dos estados com menor número de universidades federais (a única da capital reafirma que o Andes-SN é sua entidade legítima), atesta que o objetivo é de outra magnitude e que, a despeito das aparências, os seus verdadeiros proponentes são outros: a CUT, a ONG que assessora o MEC no campo sindical e o próprio governo federal que atribui a uma chapa derrotada na eleição para o Andes-SN o status de entidade sindical.
O histórico dessa ONG que assessora o MEC permite confirmar que esse “sindicato” está sendo criado para oferecer ao MEC uma casamata nas universidades em defesa dos projetos governamentais. Para a CUT, interessa a sua criação, pois, além de contribuir para o propósito da Central de enquadrar os sindicatos na condição de correias de transmissão do governo, abre caminho no serviço público para o recolhimento compulsório do imposto sindical atualmente não efetivado pelas entidades sindicais democráticas que recusam o sindicalismo atrelado ao Estado. Tanto para o governo, como para a CUT, pelos mesmos motivos, importa modificar a natureza da intervenção dos professores das grandes causas da educação brasileira para uma ação sindical estritamente econômico-corporativa. Não casualmente, três horas após a citada assembléia, a Agência Brasil de Comunicação, subordinada à Secretaria de Comunicação do Governo Federal, noticiava a criação do sindicato em tom ufanista, acusando o Andes-SN de partidarismo[1].
Não é possível explicar o suporte econômico a esse grupo e o seu acesso aos gabinetes e meios de comunicação governamentais sem considerar os vasos comunicantes entre o governo e a CUT. A simbiose da Central com o governo e com o Estado foi nutrida pelas verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador ao longo da última década. Com a eleição de Lula da Silva, a interdependência é tão estreita que um presidente da CUT “dormiu” dirigente sindical e “acordou” ministro do trabalho para fazer uma reforma trabalhista que “flexibilizaria” o trabalho e que, até alguns anos atrás, a CUT rejeitava peremptoriamente. Abandonado o princípio axial da autonomia que levou os sindicatos combativos e classistas a lutarem pela criação da Central, os seus dirigentes já não têm constrangimento em defender a unicidade e o imposto sindical nos velhos moldes do sindicalismo-de-Estado estudado por Evaristo de Moraes Filho[2].
A congruência de objetivos e formas de agir do Proifes-CUT não poderia ser diferente, pois a Central vem assessorando o grupo de professores que está a frente desse processo desde a única eleição para o Andes-SN em que foram vitoriosos em 1998 e, notadamente, nas sucessivas eleições em que foram derrotados após o campo autônomo e democrático derrotá-lo em 2000, ao final do único mandato em que estiveram a frente do Andes-SN. Provavelmente foi a CUT quem indicou que, não podendo vencer o pleito direto e democrático para a direção do Sindicato Nacional, a alternativa seria promover o desmembramento do Andes-SN, criando um sindicato que apartaria os docentes das IFES das demais universidades.
Os piores temores sobre como seria realizada a Assembléia foram confirmados. O esquema de segurança diante da sede da CUT e o aparato para “legitimar” a fraude constituída poderiam ser o cenário de "Hoffa - Um Homem, Uma Lenda", de 1992, dirigido por Danny De Vito e protagonizado por Jack Nicholson. Não pela impetuosidade de Jimmy Hoffa que fez do sindicato dos caminhoneiros uma organização poderosa ao reunir no Teamsters quase todos os caminhoneiros do país, mas pelo uso da violência, de golpes e trapaças contra os seus adversários.
O edital de convocação da Assembléia estabelecia o início das atividades para as 15h. Desde meio-dia, professores contrários ao desmembramento do Andes-SN constataram que os portões estavam fechados e, quando um grande número de docentes chegou à sede da CUT, após 14h, o aparato de segurança estava montado. Três linhas de segurança impediam o livre acesso dos mais de 200 docentes de 36 universidades que desejavam se manifestar contra o desmembramento do Andes-SN.
A trapaça para fraudar a democracia e impedir o acesso dos docentes foi feita de modo aberto. Os seguranças somente deixavam entrar um professor por vez. Após passar pela primeira barreira dos seguranças, o professor era conduzido à única mesa de credenciamento para preencher um cadastro (tendo que comprovar seu vínculo com uma universidade federal) e, a seguir, encaminhado à outra mesa para assinar o livro de presença e ser submetido à minuciosa revista corporal. Máquinas fotográficas, filmadoras, celulares e gravadores foram apreendidos: não poderia haver provas do que se passaria na AG. Somente após essas coerções é que o professor poderia se dirigir a um auditório com pouco mais que 100 lugares (embora a base das IFES ultrapasse 50 mil docentes). Entre a entrada e a liberação da revista, 10 minutos se passavam. Somente após este périplo o segurança deixava o próximo professor entrar na sede da CUT. Para que todos pudessem entrar, no ritmo imposto pela organização, seriam necessários 3h e 30 min. Enquanto os docentes contrários teriam que entrar a conta-gotas, o aparato já havia sido acionado e o complexo processo de deliberação de criação do sindicato, do estatuto e da nova diretoria foi feito em exóticos 15 minutos. As 15h15min tudo estava deliberado.
Os professores que puderam acompanhar o que se passou na AG relatam outras situações fraudulentas. Embora não previsto em Edital (e o fato de ser uma situação inusitada, pois obviamente permeável a fraudes), surgiram votos por procuração que somaram um total de 485. Segundo a mesa que presidia os trabalhos, os docentes efetivamente presentes totalizaram 115 professores, situação que não podia ser comprovada, pois havia diversos representantes da diretoria da CUT, entre os quais o Secretário João Felício e Julio Turra, bem como da CONTEE, entre outros, e, como já salientado, o auditório da sede da CUT não comporta mais de 100 pessoas. Detalhe: nenhum documento foi apresentado pelos que informavam os votos dos quais eram portadores. Eis o porquê da apreensão de câmaras, filmadoras e celulares.
Em contraste com essas práticas antidemocráticas, o ANDES-SN construiu sua legitimidade em um intenso e longo processo histórico. Nascido a partir da criação das associações de docentes em meados dos anos 1970, fazendo frente ao AI-5 e ao decreto 477, as associações foram um meio de luta em defesa da autonomia da universidade e de sua democratização. Ainda no contexto da ditadura empresarial-militar, as associações docentes se reuniram em uma Associação Nacional de Docentes em 1981, quando surgiu a Andes. Atuando com outras entidades, como a OAB e de outras categorias do serviço público, a Andes se empenhou na luta em defesa do direito a sindicalização dos servidores públicos, afinal conquistada na Carta de 1988. A transformação da ANDES em Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior demandou debates públicos, eleição de delegados em todas as instituições que faziam parte da ANDES, em número proporcional ao tamanho da base em cada instituição, em um processo que demorou pouco mais de dois anos. Em contraposição, o pretenso sindicato foi convocado por um edital firmado por um grupo de docentes reunidos em uma ONG sem qualquer debate de base.
Não é preciso ser um estudioso do Direito para saber que os procedimentos adotados pela CUT para o desmembramento do ANDES-SN são ilegais e ilegítimos. Certamente, haverá pronunciamento da justiça nesse sentido, mas não é possível ignorar que os interesses governamentais em torno desse processo se farão sentir, tanto pela referida simbiose CUT- governo, como pelo interesse de silenciar o ANDES-SN. Aqui reside a gravidade dos acontecimentos. Se não fosse pelos nexos com o aparato governamental, estaríamos diante de um ato de violência, fraude e trapaças sindicais. Mas é muito mais do que isso.
A seqüência dos acontecimentos é impressionante. A partir de questionamentos sem outras motivações que não o recolhimento do imposto sindical, alguns SINPROS objetaram a representação do ANDES-SN nas instituições privadas. Essas contendas existiam desde o final dos anos 1990, mas somente no governo Lula da Silva motivaram a suspensão do registro sindical do Andes-SN. A seguir, o Ministério do Trabalho edita portaria exigindo o recadastramento das entidades representativas dos trabalhadores do serviço público para fins da manutenção do processo de recolhimento das contribuições voluntárias de seus sindicalizados por meio da folha de pagamento, como acontece desde os anos 1980. Mas condicionam o recolhimento das contribuições ao registro sindical. Coincidência? A seguir, o mesmo ministério edita nova Portaria (186), “flexibilizando” o desmembramento de sindicatos e atribuindo ao governo o poder de escolher quem tem a representatividade.
Os nexos são evidentes. É a maior intervenção governamental nos sindicatos desde a ditadura empresarial-militar. Mas diferente de então, agora isso é operado em conluio com as maiores centrais sindicais do país. Nesse caso, a constituição do feixe sindicato-governo-trabalhadores-patrões que caracterizaram o fascismo não é somente uma analogia vazia: é o ovo da serpente que ameaça a democracia no país.
A reação do Andes-SN está referenciada em uma estratégia que tem como esteio a legitimidade de sua história. Existem batalhas jurídicas, de ordem tática, importantíssimas. A ilegalidade de tudo o que aconteceu até o momento é tão evidente que prevalecerá um posicionamento positivo ao Andes-SN. Mas uma ofensiva de tal envergadura somente pode ser respondida à altura pelas ações políticas. O diálogo verdadeiro com o conjunto dos docentes das IFES, esclarecendo o que está em curso, tem de fazer parte do núcleo sólido de todo esse processo. A energia criadora do movimento estudantil autônomo, o apoio da intelectualidade crítica, das entidades democráticas, das instituições universitárias, por meio de seus colegiados, tudo isso tem de ser feito com tal força e verdade que incendiará a indignação ativa dos docentes que saberão, nas palavras e nos gestos, defender a sua entidade construída ao longo de quase três décadas, lado a lado com as entidades democráticas que reconhecem o Andes-SN como um dos pilares da causa da educação pública no país.
*Roberto Leher é docente da FEUFRJ e já foi presidente da ANDES-SN
[1] http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/09/06/materia.2008-09-06.9064581521/view
[2] Moraes Filho, E. (1978), O problema do sindicato único no Brasil: seus fundamentos sociológicos. 2 ed., São Paulo, Alfa-Omega.