sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Conflito agrário: assassinato em Itaituba mostra inoperância de órgãos públicos

Por Cândido Neto da Cunha


No último sábado, 22 de outubro, João Chupel Primo, de 55 anos, foi assassinado com um tiro na cabeça em Miritituba, distrito situado às margens do rio Tapajós, pertencente ao município de Itaituba (PA). Dias antes, Chupel havia registrado vários boletins de ocorrência junto à Polícia Civil do município, bem como repassado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) informações detalhadas acerca da atuação ilegal de madeireiras no interior da Reserva Extrativista (Resex) Riozinho do Anfrísio e Floresta Nacional (Flona) do Trairão, unidades de conservação localizadas na região conhecida como Terra do Meio, centro sul do Pará.

Mapa: Isa

Poucas horas antes de ser assassinada, a vítima também procurou o Ministério Público Federal em Altamira, em companhia de mais dois denunciantes. Eles teriam compartilhado nomes, documentos e gravações que comprovariam as denúncias contra importantes figuras da região da BR-163, inclusive políticos conhecidos. 

Um dos denunciantes teria sido espancado dias antes de ir ao MPF, onde teria apresentado um mapa coberto de sangue, explicitando o nível de ameaças a que estava submetido.

O trio teria apontado às autoridades as principais rotas de entrada de caminhões madeireiros na região, bem como fraudes em planos de manejo aprovados apenas para “esquentar” a madeira que era retirada de dentro das unidades de conservação por estradas clandestinas. Por uma dessas rotas, sairiam cargas de até 3.000 m³ de madeira ao dia, a partir de uma base instalada no interior do Projeto de Assentamento Areia, no município de Trairão, seguindo dali pela BR-163. 

Mesmo com o conhecimento de todas as rotas de acesso à Resex e à Flona, o ICMBio suspendeu a operação que chegou a desencadear na região, e que contava ainda com apoio da Polícia Federal, da Força Nacional e do Exército. Alegando falta de segurança, a operação foi transferida para outra região e, segundo os denunciantes, de 15 a 20 caminhões voltaram a trafegar diariamente com grandes quantidades de ipê, madeira altamente valiosa e em franco processo de desaparecimento na área, devido à exploração predatória.

Após o assassinato de Chupel, o paradeiro dos outros dois denunciantes é desconhecido. O MPF anunciou em sua página que “pediu à Polícia Federal que garanta proteção para testemunhas”. Também em sua página na internet, o MPF anunciou que no sábado, dia do assassinato de Chupel, “pediu que a Polícia Federal abra inquérito para investigar os crimes ambientais na região”.

Mesmo assim, não houve até o momento nenhuma ação concreta na região para apreensão dos supostos invasores da Resex e da Flona, o que faz supor que tenha havido tempo de sobra para a suspensão da atividade, caso as denúncias sejam verdadeiras. O paradeiro dos assassinos de Chupel também é desconhecido.

O Bispo da Prelazia de Itaituba, Dom Frei Wilmar Santin, lançou uma nota em que responsabiliza o governo pelo acontecimento. “A responsabilidade de mais uma vida ceifada na Amazônia é do atual governo, do Ibama/ICMBio e da Polícia Federal, que não deram continuidade à operação iniciada para coibir essa prática de morte, tanto da vida da Floresta como de pessoas humanas. Desde 2005 até os dias atuais, já foram assassinadas mais de 20 pessoas nessa região. Quantas vidas humanas e lideranças ainda tombarão?” 

A suspensão das operações de combate à extração ilegal de madeira pelo ICMBio e Forças de Segurança teria sido uma espécie de sinal verde para pistoleiros assassinarem Chupel. “Um soldado do Exército trocou tiros com pessoas que cuidavam da picada quilômetros adentro da mata, e acabou ficando perdido por cinco dias no mato. Depois disso o Exército retirou o apoio e a Polícia Militar não quis entrar na operação”, diz Santin, em outro trecho da nota. Até o momento não houve nenhuma explicação dos motivos da suspensão da operação.

Ao longo desta semana, correram inúmeras notícias e versões sobre o perfil da vítima assassinada. Em nota da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Nacional, a vítima é apresentada como mecânico e liderança católica da comunidade em Miritituba. Já em veículos de comunicação nacional, Chupel aparece como liderança do PA Areia,  mesma versão noticiada pelo MPF. Fala-se também que ele seria um extrativista e um defensor dos direitos humanos. A imprensa local se refere à vítima como um empresário com negócios nos municípios de Itaituba, Rurópolis e Trairão. De tantas histórias distintas, chegou a circular pela cidade de Itaituba que se trataria não de uma, mas duas vítimas.

O que explicaria as conexões da vítima com áreas tão distintas, envolvendo ao menos três grandes municípios da região Oeste do Pará? Como interpretar as várias versões que surgem sobre as suas atividades? Seria efetivamente difícil conceber que uma mesma pessoa atuasse como liderança social no PA Areia, ao mesmo tempo em que morasse e trabalhasse no distrito de Miritituba, onde, por sinal, também seria reputada como liderança, e ainda com negócios nos municípios de Trairão e Rurópolis. Estamos falando de áreas relativamente distantes entre si, mas que por fatos ainda não explicados, estavam territorialmente ligadas à Chupel.

Contudo, independentemente de quem seria a vítima, há muitas evidências da relação entre as denúncias realizadas por ela e sua execução. Trata-se, sem dúvida, de mais um conflito agrário e mais uma morte na Amazônia, neste sangrento ano de 2011, no mesmo momento em que governo Dilma Roussef paralisa qualquer iniciativa de reforma agrária, promove a aceleração da grilagem via programa “Terra Legal” e deixa as unidades de conservação jogadas à sanha de madeireiros.

Para uma melhor contextualização do cenário, os ribeirinhos da Resex Riozinho do Anfrísio recentemente denunciaram que as ameaças e crimes praticados no interior dessa unidade de conservação crescem a cada dia, em níveis piores do que os registrados em 2004, quando a Resex foi criada.  Já o PA Areia é um dos assentamentos interditados judicialmente entre os anos de 2007 e 2010, exatamente por denúncias do MPF contra o Incra por favorecimento da indústria madeireira.

A negligência do Estado em relação a territórios co-geridos por ele, como é o caso de projetos de assentamentos e unidades de conservação, deixam essas áreas à mercê da grilagem e das madeireiras. Essas, por sua vez, promovem o cooptação de possíveis adversários e, quando a tática não funciona, utiliza de ameaças e outras formas mais duras de violência.

O assassinato de Chupel, após uma peregrinação por órgãos públicos que foram incapazes de lhe dar proteção, agravado pelo sumiço dos outros dois denunciantes e pelo fato de qu até agora nada foi feito contra os denunciados, é um péssimo sinal contra os trabalhadores e defensores da Amazônia. Se o Exército, a Força Nacional e a Polícia Federal suspendem operações por “falta de segurança”; se uma pessoa é assassinada em seu lugar de trabalho horas depois de fazer uma denúncia no MPF; se o órgão que administra as unidades de conservação sabe que estas estão tomadas por invasores e nada faz; então não se pode esperar mesmo nada – a não ser mais ilegalidade, violência e morte, quando o governo protege quem em tese deveria combater, e deixa os ameaçados largados à própria sorte. 
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