sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Garimpo na terra yanomami: violência e ganância


Felipe Milanez*

Genocídio. Invasão. Guerra. Contaminação por mercúrio, malária, doenças infecciosas. Quando se fala em garimpos ilegais de ouro na terra indígena yanomami, é como se dezenas de cavaleiros do apocalipse (sim, da cultura ocidental) começassem a marchar. Ao menos, essa é a imagem que vem à cabeça, ilustrada e contrapostas por fotografias emblemáticas de Cláudia Andujar.
Essas faces da morte são cortadas com uma frase afiada: "eu não tenho medo de morrer", me diz Davi Kopenawa Yanomami.
O drama vivido pelo povo yanomami nos anos 80, que chocou o mundo, começa a se reconstituir. Garimpeiros ilegais invadiram a reserva e lá estão estabelecidos nesse momento.
Para quem acompanha de perto essa invasão, que começa sorrateira, mas que no desvio dos olhares disfarçados, ganha corpo, volume, e poder de enfrentamento, não está surpreso pelo que foi mostrado recentemente na TV. Há anos Kopenawa bate na mesma tecla: a terra indígena yanomami está sendo invadida por garimpeiros. Garimpeiros, que seu povo chama de warari koxi que seria, segundo ele, porco de casa ("porco que faz buraco no mato, suja tudo, e come esterco"). E a falta do eco de seus gritos fez com que o número de invasores se multiplicassem.
São cada vez mais tantos garimpeiros que, esperam os políticos do estado de Roraima, seja enfim dado a trágica invasão o título de "fato consumado" - o Estado, criado pela Constituição Federal de 1988, sempre se posicionou contra a demarcação de terras indígenas. E para discutir esse difícil tema, uma complexa audiência terá lugar na Câmara dos Deputados na manha desta quinta-feira 27.
Uma audiência na Comissão de Amazônia, Integração Nacional e de Desenvolvimento Regional, tem como pauta confirmada o tema de "Violação dos Direitos do Povo Yanomami ", pelos Requerimentos nº 84/2011 e nº 100/2011 da Deputada Janete Capiberibe e Requerimento nº 139/2011 do Deputado Domingos Dutra. Nela, vão expor o Ministro da Justiça José Eduardo Cardoso, o ministro da defesa, Celso Amorim, o presidente da Funai, Márcio Meira, o diretor da Polícia Federal, Leandro Coimbra, junto do Diretor-Geral do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), Sérgio Dâmaso, e a vice-procuradora da República, Débora Duprat, além da advogada Ana Paula Souto Maior, do Instituto Socioambiental (ISA). Tanto poder junto, bastaria um sopro para que os garimpeiros, que são pessoas pobres em busca de um lucro rápido, manipulados por uma elite invisível, sumissem da área yanomami. Mas não parece ser essa a direção que irá tomar toda a força política que estará reunida.
Por isso, no mesmo ambiente, está Davi Kopenawa Yanomami.
Davi, me descreveu certa vez o cientista Antônio Nobre, "é o Einstein da Amazônia". Por ai, publicam de vez em quando que ele seria o "Dalai Lama da Amazônia." Na verdade, Kopenawa é um líder (tanto na acepção política, quanto espiritual) do povo yanomami - e outras comparações podem parecer desnecessárias, ou até mesmo, etnocêntricas.
A presença de Davi, em meio aos engravatados, se faz necessária.
É provável que o ambiente seja invadido por fantasmas. Não apenas dos tantos yanomamis mortos por malárias e conflitos com os garimpeiros, nem só os 19 espíritos daqueles yanomami massacrados pelo genocídio de Haximu. Mas almas infecundas que ressurgem das trevas autoritárias sempre que o sentimento de uma suposta união do povo brasileiro encontra o inimigo índio: a internacionalização da Amazônia. Esses são os "fantasmas convenientes".
Sempre que convém à elite, ou aos que estão se beneficiando de um jogo ilegal de poder, seja militar, seja fazendeiro, seja garimpeiro, são evocados os fantasmas da "internacionalização" - que seriam, segundo essa teoria, capitaneadas por armas e recursos internacionais usando fantoches índios. Os "índios" são vistos como indefesos alienígenas na floresta> Floresta que, quando menciona, Davi o faz com profundo respeito. Não apenas porque os índios ocupam essa floresta há pelo menos dez mil anos, mas, como mostra a arqueologia e a etnobotância, eles ajudaram a modelar e a transformar a biodiversidade nessa longa ocupação.
Capitaneando oportunamente o lado conspiratório da internacionalização, está o deputado Paulo Cesar Quartiero, personagem sempre presente quando se discute direitos indígenas, sobretudo, após a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol (ele possuía uma fazenda, cuja posse foi considerada ilegal e de má-fé e recebeu apenas algumas benfeitorias). "Na Amazônia está sendo feita a política da terra arrasada. O que é a política da terra arrasada, é o que os russos fizeram quando o exército alemão invadiu a Rússia: eles se retiraram e destruíram tudo, para não dar maneira de o exército alemão subsistir". Por isso, explica o migrante gaúcho, integrante da leva que invadiu a Amazônia durante o tempo da ditadura militar, a atividade econômica, palavras de Quartiero, estaria sendo proibida na Amazônia - o garimpo é visto como uma atividade econômica, assim como suas plantações de arroz. Sem atividade econômica, a floresta seria "terra arrasada" (visão oposta da de Davi sobre o mesmo meio ambiente). Desta feita, impedir atividade econômica, e destinar terra aos índios, seria abrir as portas para uma invasão estrangeira.
Conversei com Kopenawa sobre o que ele espera da audiência.
Terra Magazine - Qual expectativa?
Davi Kopenawa Yanomami - Eu acho que é importante discutir a nossa situação. Nosso problema da terra yanomami, que nunca vai ficar livre, vai sempre ter problema antigo. É importante a gente conversar sobre os garimpos. A garimpagem que está deixando a gente ficar revoltado. Já está repetindo como o que aconteceu em 1986. Isso está voltando de novo. Eu, yanomami, quero conversar com autoridade não-índio, com gente que apoia a nossa luta, para quebrar a força de quem esta contra nós, contra povo indígena e a terra indígena.

As autoridades são aliadas?
Eu sei que as autoridades, os próprios senadores e deputados, fizeram uma lei que tem que ser respeitado. A lei fala que não pode o branco garimpar na terra. Acho que eles esqueceram. Esqueceram. Não querem mais lembrar. Eu falo que eles não querem respeitar o que a lei que fala. O artigo 231 da Constituição. Todo mundo sabe. Foram eles que fizeram. Os brancos que fizeram essa lei, mas eles não tão respeitando a lei deles. A terra está demarcada, homologada, registrada. Todo mundo sabe disso. Essa foi a maior luta, foi muito difícil. E estão querendo mexer de novo. Eu quero que o homem branco respeite o meu povo yanomami.

Querem mudar a lei? Criar uma lei para permitir a mineração em terras indígenas. O senhor concorda?
Eu não queria mudar a lei. A lei esta no papel. A lei é a Constituição Federal. Esse é o papel. Para mudar a lei, acho que pra mim não é bom fazer isso. Não é bom porque vai prejudicar a terra indígena, e o povo indígena que mora na terra dele. Vai prejudicar, e ficar mais difícil. Se mudar a lei, para ter mineração, vão deixar sofrer os povos indígenas do Brasil.

O genocídio que o povo yanomami sofreu, no massacre de Haximu, faz com que o seu povo tema ainda mais os garimpeiros?
Naquela vez, quem deixou garimpeiros entrar foi o presidente da Funai na época. Foi ele quem criou esse problema. Eu não gosto de falar o nome dele refere-se ao atual senador Romero Jucá. Ele que estragou o trabalho da Funai, ele que derramou os garimpeiros lá, que derramou sangue. Mas eu não tenho medo de morrer. ninguém está roubando e levando como branco faz. Nós somos de lá. Nós somos da terra yanomami, nascemos há muitos anos, há mais de 500 anos que meu povo está la. Eu não tenho medo de morrer, eu não sou ladrão. Nós temos direitos. Temos o direito de viver em paz. É a nossa terra ali.

O povo yanomami quer se separar do Brasil? 
Nãoo. Nós somos brasileiros. Nós, os yanomami brasileiros, não queremos ficar separados do Brasil. Isso inventaram. Branco inventa isso. Branco pensa que nós vamos separar, que nos vamos fazer outro pais independente. Esse é o pensamento dele. A consciência do povo yanomami é permanecer morando na sua própria terra, onde nasceram, viveram muito anos, onde o criador criou nos, criou nossa terra, nosso alimento, nossa raiz. Nós, povo yanomami, não estamos pensando em ficar separado. Queremos é a terra demarcada. Foi o governo quem demarcou a terra. Eles que inventaram demarcar terra. Nós queremos é garantir a lei, e não estão garantindo a lei por causa da riqueza da terra.

*Felipe Milanez (felipemilanez@terra.com.br) é jornalista e advogado, mestre em ciência política pela Universidade de Toulouse, França. Foi editor da revista Brasil Indígena, da Funai, e da revista National Geographic Brasil, trabalhos nos quais se especializou em admirar e respeitar o Brasil profundo e multiétnico. Publicado originalmente no Terra Magazine.
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