De acordo
com dados de 2009, os estrangeiros possuem 34.371 imóveis ocupando 4,348
milhões de hectares do Brasil, ou 0,5% do território nacional. A aquisição de
terras por estrangeiros no país é, portanto, quantitativamente insignificativa
e o alarde em torno do tema não passa de um factoide para esconder a grilagem
de terras públicas.
Por
Ariovaldo Umbelino de Oliveira*
No Brasil,
há vários temas que aparecem ao longo de sua história contemporânea como
“factoides”. Eles vão e voltam aos noticiários cotidianamente, criando uma
ilusão de que são verdadeiros. O principal deles tem sido a internacionalização
da Amazônia. Durante a ditadura, enquanto a sociedade brasileira discutia o
assunto, os militares foram abrindo a Amazônia ao interesse do capital nacional
e internacional. O Projeto Jari, do multimilionário Daniel K. Ludwig, foi posto
em prática na divisa do Pará e do Amapá com seus mais de 4,6 milhões de
hectares.
Em 2008, o
governo federal de Luiz Inácio resolveu reinventar um factoide para “divertir”
a esquerda e, particularmente, os movimentos socioterritoriais e sindicais. A
grande “jogada ideológica” foi a questão da aquisição de terras por
estrangeiros no Brasil. Ela foi “fabricada” pelo Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA) e pelo Incra, e coube a Rolf Hackbart, ex-presidente desse
instituto, anunciá-la.
Pela
segunda vez essa notícia veio à tona, pois a primeira foi em plena ditadura
militar, em 1968, quando os órgãos públicos e os grileiros estavam vendendo
terras brasileiras a grupos estrangeiros. É desses dois fatos, um verdadeiro −
a tragédia − e outro fabricado − a farsa −, que este texto tratará, lembrando
um pensamento clássico de Marx.
Entre 1964
e 1968, o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) viveu um processo
intenso de corrupção, grilagens e venda de terras públicas para estrangeiros, o
que culminou em uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Seu relatório final
comprovou o envolvimento de particulares, funcionários do Ibra e de cartórios
públicos na venda de mais de 20 milhões de hectares de terras a estrangeiros,
principalmente na Amazônia, via expedientes escusos: presença de brasileiros
como intermediários, compra com antigos proprietários ou posseiros, requisição
de terras devolutas aos governos estaduais e grilagem de terras públicas. Essa
tragédia da história brasileira fazia parte da política posta em prática pelos
governos militares e por empresas nacionais e internacionais, visando explorar
os recursos naturais do país.
Para sanar
esses problemas, fez-se uma lei para regular a questão, porém, deixaram-se
brechas para ratificar as irregularidades, tornando-as “legalizáveis”. A Lei nº
5.709/71 regula a aquisição de imóvel rural por estrangeiro residente no país
ou pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil. Essa lei
consagrou as restrições e aberturas para o capital estrangeiro chegar à
propriedade de terra no país, entre elas a associação com brasileiros
“laranjas”. Permitia também, ao presidente da República, por meio de decreto,
autorizar a aquisição de terras por estrangeiros além dos limites fixados por
lei, desde que fosse julgada prioritária de acordo com os planos de
desenvolvimento nacionais. Os limites da lei indicam que a aquisição pode ir a
até 10% das terras de um município e a soma das propriedades estrangeiras não
pode exceder um quarto da área municipal, ficando limitada a aquisição de
terras por estrangeiros em cinquenta módulos fiscais.
Embora o
Incra fosse, até 1995, responsável pelo controle da aquisição de terras por
estrangeiros no Brasil, a Emenda Constitucional n. 06 alterou a compreensão que
estava em vigor, passando-se ao entendimento de que o parágrafo 1º do artigo 1º
da Lei nº 5.709/71, que permitia esse controle, havia sido revogado. Esse
entendimento derivou da compreensão sobre pessoa jurídica brasileira emanado do
Parecer n. GQ-181/98 da Controladoria Geral da União (CGU). Portanto, aos
estrangeiros não era mais necessário requerer autorização para adquirir imóveis
rurais no território nacional. Esse parecer foi substituído por outro, o
CGU/AGU nº 01/2008-RVJ/2010, que novamente passou a requerer o controle pelo
Incra das terras adquiridas por estrangeiros.
Segundo o
Incra, em 2009 os estrangeiros possuíam 34.371 imóveis ocupando 4,348 milhões
de hectares, ou 0,5% do país. A distribuição regional mostrava que a Amazônia
Legal tinha 34,6% da área ocupada dessas terras, enquanto o restante do país
ficava com 65,4% da área dos imóveis.
A
contrarreforma agrária
Esse “novo
escândalo” começou a ser encenado em 2008, ano marcado pelas crises dos
alimentos e das finanças, ambas derivadas do neoliberalismo, que trouxeram
consigo o movimento de elevação dos preços das terras no Brasil. Assim, setores
de investidores estrangeiros passaram a aplicar na aquisição de terras. A mídia
econômica mostrava à sociedade brasileira que o rentismo capitalista dos
proprietários de terra estava em marcha altista.
Entretanto,
na contramão da história, o II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) terminou
no primeiro ano do segundo mandato do governo do PT, sem que a metade das metas
das 540 mil famílias assentadas fosse atingida, e não se elaborou o III PNRA.
Ou seja, o segundo mandato revelava o início da contrarreforma agrária. A ação
vinha da banda podre dos funcionários do Incra, fazendo valer sua intenção de
“vender as terras públicas da reforma agrária na Amazônia Legal para os
grileiros”. Dessa forma, o segundo mandato de Luiz Inácio consagrou a
regularização fundiária como política mestra do governo. É essa a questão que
está por trás da divulgação da notícia do crescimento da aquisição de terras
por estrangeiros no Brasil pelo próprio ex-presidente do Incra, Rolf Hackbart.
Ela visou levar os movimentos socioterritoriais e sindicais a se envolver com o
debate, deixando no esquecimento a reforma agrária e passando, por
consequência, a apoiar a regularização fundiária e o Programa Terra Legal, o
instrumento principal da contrarreforma agrária.
É preciso
esclarecer que em termos mundiais há movimentos de capitais na direção de
aquisição de terras no universo capitalista neste período histórico, mas ele
não é tão diferente do que ocorreu no século XX. Portanto, essa questão não é
específica nem vem marcada por peculiaridades específicas deste início de
século XXI. Aliás, no Brasil a questão não tem a importância que se quer dar a
ela, e é isso que este texto procura mostrar.
A difusão
do “novo escândalo” da aquisição de terras por estrangeiros no Brasil fabricado
pelo MDA e pelo Incra teve papel-chave para o ex-presidente do órgão. Em 4 de
março de 2008 foi publicada matéria jornalística relativa aos “problemas” que a
multinacional sueco-finlandesa Stora Enso estava enfrentando com o Incra. O
órgão não estava aceitando os registros das compras de terras na faixa de
fronteira do Rio Grande do Sul em nome da subsidiária da empresa dirigida por
executivos brasileiros, a Derflin Agropecuária Ltda. Como a empresa não tinha
solicitado autorização prévia do Conselho de Defesa Nacional (CDN), órgão de
consulta da Presidência da República para assuntos ligados à soberania e defesa
do Estado, decidiu abrir a empresa Azenglever Agropecuária Ltda. em nome de
seus executivos brasileiros, para a qual a titularidade das terras foi
transferida para registro. O plano da burla de lei previa, no final, a
incorporação da empresa pela Derflin.
No dia
seguinte, o ex-presidente do Incra fez divulgar informação que a compra de
terras na fronteira pela Stora Enso era ilegal e que havia mentiras nas
declarações dos dirigentes da multinacional em relação aos documentos dos
imóveis, pois eles cobriam apenas 17 mil dos 46 mil hectares divulgados.
Também no
dia 4 de março de 2008, Rolf Hackbart depôs na Comissão de Agricultura do
Senado Federal, procurando mostrar que tinha aumentado a procura de terras
brasileiras por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras, sem nenhum controle
pelo Estado, e afirmando inclusive que “os grandes fundos de pensão do exterior
tendem a investir cada vez mais em imóveis rurais brasileiros. Não se trata de
xenofobia. O ponto central é a proteção da soberania nacional”.1
A grilagem
das terras públicas da Amazônia e do Brasil em geral sempre foi alimentada
pelas políticas públicas dos diferentes governos nos últimos cinquenta anos.
Durante os governos militares, era feita por “laranjas”, via falsas procurações
− a “grilagem legalizada”. Agora, uma parte dos funcionários do Incra “oferece”
e “reserva” as terras públicas para os grileiros e indica o caminho “legal”
para obtê-las. A denúncia desses fatos levou a Polícia Federal a fazer várias
operaçõese prisões−entre
elas a Operação Faroeste, no Pará −, e mandar para a prisão altos funcionários
do órgão.
O Incra,
nos governos militares, arrecadou e discriminou terras públicas em toda a
Amazônia Legal. O órgão tem 67.823.810 hectares sem destinação. Todas essas
terras estão “cercadas e apropriadas privadamente”, “vendidas” pelos
funcionários corruptos do Incra, que passaram, como o governo petista, a propor
“soluções” jurídicas para legalizar o crime cometido contra o patrimônio
público.
Primeiro,
no final de 2005, conseguiram inserir na Lei n. 11.196/05 o artigo 118, que
permitia a regularização das terras na Amazônia Legal até 500 hectares.
Segundo, o
governo de Luiz Inácio assinou a Medida Provisória n. 422, de 25 de março de
2008, convertida na Lei n. 11.763/08. Seu texto, seguindo a MP anterior,
alterou novamente a Lei n. 8.666/93, permitindo a dispensa de licitação para
alienar os imóveis públicos da União até quinze módulos fiscais (1.500
hectares). O próprio ex-diretor de Ordenamento da Estrutura Fundiária do Incra,
Roberto Kiel, reafirmou a adesão total ao agrobanditismo: “Agora eles poderão
comprar do governo federal as terras que já ocupavam havia anos e não vão
precisar concorrer com outros interessados”.2
Terceiro,
o MDA e o Incra foram mais longe e propuseram, em 2009, a Medida Provisória n.
458, de 10 de fevereiro de 2009 (Lei n. 11.952/09), que dispunha sobre a
regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da
União, no âmbito da Amazônia Legal, alterando novamente a Lei n. 8.666/93. Ao
contrário da MP 422, permitia inicialmente a regularização de área pública
grilada até 2.500 hectares, além de estender a ação para as áreas da faixa de
marinha. Dela, apenas não foi aprovada pelo Congresso Nacional a extensão da
legalização aos 2.500 hectares, permanecendo os 1.500 hectares da MP anterior.
Quarto,
aprovada a conversão da MP 458 em lei, na “calada da noite” o pedido da
multinacional sueco-finlandesa Stora Enso obteve a autorização prévia do CDN
para a regularização das terras adquiridas na faixa de fronteira do Rio Grande
do Sul.
Para
fundamentar o “novo escândalo”, o MDA e o Incra encomendaram um relatório
técnico3 sobre a
aquisição de terras por estrangeiros no Brasil, utilizando dados do cadastro do
Incra. O relatório, em função da opção metodológica, utilizou somente os dados
referentes aos imóveis médios e grandes, para explicar a concentração, porém,
deixou de expressar o total dos imóveis adquiridos por estrangeiros e sua
participação percentual na área total dos municípios, requisito do artigo 12 da
Lei n. 5.709/71.Assim,
não se evidenciaram os municípios que já tinham excedido o limite legal de 25%:
Magda (SP), 59,4%; Campo Limpo Paulista (SP), 41,2%; Eunápolis (BA), 39%; e
Santa Cruz Cabrália (BA), 29,54%.
Em agosto
de 2010, dias após o último parecer mais restritivo da AGU, o Incra apresentou
estatísticas cadastrais entre 1972 e 2009, cujos dados revelavam o inverso da
tese defendida pelo ex-presidente do instituto. O número dos imóveis de
estrangeiros caiu de 43.403, em 1972, para 34.371, em 2009; e a área ocupada
caiu de 7,161 milhões de hectares, em 1972, para 4,384 milhões, em 2009,
revelando a dimensão territorial reduzida das terras em poder de estrangeiros
no Brasil diante das disposições legais vigentes: 0,5% do território
brasileiro.
Outro
relatório técnico foi encomendado a Augusto Mussi Alvim4 sobre os Investimentos Estrangeiros
Diretos (IEDs) na agropecuária e a aquisição de terras por estrangeiros.
Revelou-se que em 2002 os estrangeiros destinaram US$ 104 milhões para a compra
de terras, elevando para US$ 548 milhões em 2008. Entretanto, fazendo o cálculo
indireto sobre a quantidade de terras que esses investimentos poderiam ter
atingido em 2002 e 2010, utilizando preços médios por hectare de terra de
pastagem em Mato Grosso e dólar médio, comprar-se-ia 108 mil hectares em 2002 e
411 mil em 2010. Assim, tomando a média de crescimento anual no período seria
possível adquirir um total de 2,322 milhões de hectares, equivalentes a 0,27%
da superfície do país, que somado ao total já existente chegar-se-ia a 6,822
milhões de hectares em poder de estrangeiros (0,8% do território brasileiro). E
mais, se o mesmo ritmo de crescimento fosse mantido, o limite legal de 25%
somente seria atingido no ano de 2111. Assim, nem raciocinando-se de modo
hipotético a aquisição de terras por estrangeiros no Brasil é quantitativamente
significativa.
Por fim, o
lobby das empresas do agronegócio dos setores sucroenergético e de silvicultura
passou a fazer pressão para o governo Dilma rever o limite legal para aquisição
de terras por estrangeiros, como manda a aliança de classe entre a burguesia
brasileira e a mundial. Por isso o governo, a partir da coordenação da
Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), elaborou uma proposta de projeto de
lei segundo a qual pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras que comprarem área
entre 5 mil e 500 mil hectares terão de pedir autorização a um órgão a ser
criado, o Conselho Nacional de Terras (Conater), e áreas acima de 500 mil
hectares terão de ser aprovadas pelo Congresso Nacional. Deverão ainda
construir uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) para comprar as terras e
oferecer uma golden shareao governo.
Como se
pode comprovar, todos que acreditaram no “novo escândalo” provavelmente
esqueceram o limite legal imposto pela Lei n. 5.709/71, ou seja, que os
estrangeiros podem adquirir até 212,869 milhões de hectares do território
brasileiro.
Na
realidade, a farsa do “novo escândalo” procura esconder a grilagem das terras
públicas e a ação da banda podre dos funcionários do Incra, para legalizá-la,
via contrarreforma agrária no governo Luiz Inácio, e agora de Dilma Rousseff,
se ela permitir. Além disso, o factoide visa a retirada da reforma agrária da
agenda como política pública de promoção do desenvolvimento econômico e social
e de construção da soberania alimentar do país.
*Ariovaldo
Umbelino de Oliveira é doutor em Geografia Humana e professor titular da
Universidade de São Paulo. Artigo publicado originalmente no Le Monde Diplomatique – Brasil. Número
50 (setembro de 2011)