Os moradores de Alter do Chão afirmam ser a continuidade histórica e cultural dos povos que foram encontrados ali pelos portugueses, e que, mesmo tendo passado por profundas mudanças sócio-culturais, persistiram indígenas. Eles decidem que querem continuar sendo Borari.
Professor Doutor Frei Florêncio Almeida Vaz*
“Ah, os Borari desse Alter do Chão tem uma
história comprida. O pouco que eu sei talvez é o pedaço mais doloroso, que
começa faz quase 400 anos. Mas são também séculos de teimosia, de não arredar o
pé dali. Os padres vieram e se foram, a guerra da Cabanagem matou muita gente,
os patrão da borracha e o tempo do carrancismo – os índios tudo criados deles.
E uns Borari foram ficando por ali, e se animando com tarubá, promessas,
ladainhas e Sairé – ‘que num era como hoje, não!’; nos puxiruns, respeitando
misura de Curupira e boto. Ah, mano, se eu for te contar… Prá encurtar a
conversa, quando eu era criança nossa casa era ali bem ao lado da praça onde
tem agora aquela pousada. Era pular da rede, e já estava na praia. Aquilo que
era liberdade! De lá nós fomos empurrados mais prá cá, já por trás do
cemitério, onde eu vendi o terreno depois – ‘nem sei nem por quanto’ – prá hoje
a gente estar aqui mais prá trás já, bem dizer no Caranazal. É verdade… Agora é
o seguinte, daqui eu não vou arrecuá mais!”.
Compreender a situação dos indígenas em Alter do Chão exige a escuta paciente do outro e a observação atenta daquilo que eles nem mesmo falam, do que aprenderam a ser e sentir em silêncio. É preciso ir além da praia, do Sairé e do Carnaval. E é melhor nem perguntar se são a favor da demarcação da Terra Indígena (TI). Pergunta óbvia consegue resposta fácil, quase sempre superficial ou enganosa. Durante os últimos séculos, por exemplo, eles não diriam que eram “índios”, pois índios eram os “gentios”, os outros. Como qualquer povo, os Borari se achavam mais civilizados e melhores do que os outros. E os mais velhos certamente falavam que eles eram diferentes dos judeus, dos “brancos”, dos outros. Hoje eles sabem que o nome desse seu diferente modo de se conceber como gente é “índio Borari”, e até cantam: “Eu sou índio Borari, eu sou nativo daqui, sou filho deste lugar (…). Somos uma única nação”.
Os moradores de Alter do Chão afirmam ser a continuidade histórica e cultural dos povos que foram encontrados ali pelos portugueses, e que, mesmo tendo passado por profundas mudanças sócio-culturais, persistiram indígenas. Eles decidem que querem continuar sendo Borari. Enquanto antropólogos, examinamos a afirmação identitária do grupo, a sua história e a sua forma de vida atual, para buscar o sentido do que eles pensam que são. Em quais sentidos esse grupo é indígena? Conforme o sentido que os próprios nativos dão à sua afirmação, eles continuaram indígenas, mesmo quando não eram assim considerados pela sociedade regional, pelos antropólogos e até por eles mesmos.
É evidente que não compete a nenhum antropólogo atestar quem é verdadeiramente indígena, pois só os próprios indígenas é que podem fazê-lo quando afirmam tal identidade. Mas parece que o problema maior não é a existência dos indígenas Borari em si, e sim a possibilidade de que eles tenham respeitado o seu direito constitucional a terra demarcada.
Ora, é possível que esta demarcação, além de garantir o bem viver dos Borari, até melhore as “perspectivas turísticas” de todos em Alter do Chão. Ainda mais com a garantia da Funai de que a área urbana do distrito “ficará de fora da demarcação”. Trata-se de uma decisão dos próprios indígenas de abrir mão desta área pertencente à sua TI: “as áreas requeridas pelos indígenas são [as] do entorno da vila”, onde estão as nascentes dos igarapés e as áreas de floresta. E que as áreas de floresta no entorno da vila fiquem nas mãos dos indígenas é até uma garantia de que no futuro os turistas terão ambiente natural para observar e desfrutar. Está comprovado que no Brasil é nas TI que as florestas estão mais conservadas. Uma foto aérea do Parque Indígena do Xingu (MT), com o deserto da soja ao redor, comprova isso.
As tensões no processo de demarcação de TI no Tapajós são compreensíveis. Foi em 2001 que a Funai enviou à região do baixo Tapajós o primeiro Grupo Técnico (GT), que produziu um Relatório reconhecendo a legitimidade histórico-cultural e social destas reivindicações indígenas. Em 2003, com o anúncio da vinda do GT de Identificação e Delimitação das terras dos Munduruku na Flona, foi suscitado um contexto de “conflito” que seria provocado pelos indígenas. Moradores das comunidades não-indígenas reclamavam que a demarcação iria “tomar” as suas terras e expulsar-lhes da área.
Representantes do Ibama e de Ongs se referiam à existência de um “clima de guerra” entre índios e não-índios. Antropólogos, diretores da Funai, MPF e líderes indígenas esclareceram que aquele temor não tinha fundamento.
Enquanto isso, sem alarde, pesquisas etnográficas com longos meses de campo eram realizadas nas aldeias do baixo Tapajós. Em 2005, foram defendidas duas teses de doutorado sobre os Munduruku da Flona, uma nos EUA, e outra na Espanha. Em 2008, veio mais uma tese de doutorado, sobre indígenas no rio Arapiuns. Foram trabalhos elaborados com rigor científico e que passaram pela avaliação de bancas de alto nível, que estão disponíveis para consulta e muito tem contribuído para o avanço do conhecimento sobre tais povos.
Em 2007, devido à reação dos indígenas no rio Maró contra a invasão das suas Terras por empresários vindo do Centro Oeste, surgiu mais uma onda de calúnias. Em jornais de Santarém líderes eram apontados como “falsos índios”. Em julho de 2008 a Funai enviou os GTs para identificar as TI Cobra Grande, Maró (rio Arapiuns) e Borari (Alter do Chão).
A campanha negando a existência de indígenas no Maró e em toda a região se acirrou, mostrando o poder político e econômico dos que estavam por traz das acusações. Mesmo assim, o reconhecimento oficial do Estado sobre as TI na região avança. Em 2009, foram publicados no Diário Oficial da União (DOU) os Relatórios de Identificação das duas TI dos Munduruku na Flona Tapajós, e em 2011 foi publicado o Relatório da TI Maró.
Nestes 20 anos de pesquisa de campo sobre os povos indígenas no baixo Tapajós, que resultaram também numa tese de doutorado (UFBa, 2010), tenho escutado muitas histórias desses moradores. Enquanto falam das suas origens, suas tradições e seus lugares de memória, eles afirmam identidades próprias, com seus respectivos projetos de futuro. Foi assim que se conservaram e se recriaram durante séculos. Recentemente, recuperaram um orgulho étnico até então nem notado e a consciência de ter direitos. Isso tem a ver com trabalho educativo da Igreja Católica, do Grupo Consciência Indígena (GCI) e dos vários movimentos sociais. O que faço é escutar estas histórias, escrevê-las e juntar com outras histórias já escritas, e recontá-las.
Compreender a situação dos indígenas em Alter do Chão exige a escuta paciente do outro e a observação atenta daquilo que eles nem mesmo falam, do que aprenderam a ser e sentir em silêncio. É preciso ir além da praia, do Sairé e do Carnaval. E é melhor nem perguntar se são a favor da demarcação da Terra Indígena (TI). Pergunta óbvia consegue resposta fácil, quase sempre superficial ou enganosa. Durante os últimos séculos, por exemplo, eles não diriam que eram “índios”, pois índios eram os “gentios”, os outros. Como qualquer povo, os Borari se achavam mais civilizados e melhores do que os outros. E os mais velhos certamente falavam que eles eram diferentes dos judeus, dos “brancos”, dos outros. Hoje eles sabem que o nome desse seu diferente modo de se conceber como gente é “índio Borari”, e até cantam: “Eu sou índio Borari, eu sou nativo daqui, sou filho deste lugar (…). Somos uma única nação”.
Os moradores de Alter do Chão afirmam ser a continuidade histórica e cultural dos povos que foram encontrados ali pelos portugueses, e que, mesmo tendo passado por profundas mudanças sócio-culturais, persistiram indígenas. Eles decidem que querem continuar sendo Borari. Enquanto antropólogos, examinamos a afirmação identitária do grupo, a sua história e a sua forma de vida atual, para buscar o sentido do que eles pensam que são. Em quais sentidos esse grupo é indígena? Conforme o sentido que os próprios nativos dão à sua afirmação, eles continuaram indígenas, mesmo quando não eram assim considerados pela sociedade regional, pelos antropólogos e até por eles mesmos.
É evidente que não compete a nenhum antropólogo atestar quem é verdadeiramente indígena, pois só os próprios indígenas é que podem fazê-lo quando afirmam tal identidade. Mas parece que o problema maior não é a existência dos indígenas Borari em si, e sim a possibilidade de que eles tenham respeitado o seu direito constitucional a terra demarcada.
Ora, é possível que esta demarcação, além de garantir o bem viver dos Borari, até melhore as “perspectivas turísticas” de todos em Alter do Chão. Ainda mais com a garantia da Funai de que a área urbana do distrito “ficará de fora da demarcação”. Trata-se de uma decisão dos próprios indígenas de abrir mão desta área pertencente à sua TI: “as áreas requeridas pelos indígenas são [as] do entorno da vila”, onde estão as nascentes dos igarapés e as áreas de floresta. E que as áreas de floresta no entorno da vila fiquem nas mãos dos indígenas é até uma garantia de que no futuro os turistas terão ambiente natural para observar e desfrutar. Está comprovado que no Brasil é nas TI que as florestas estão mais conservadas. Uma foto aérea do Parque Indígena do Xingu (MT), com o deserto da soja ao redor, comprova isso.
As tensões no processo de demarcação de TI no Tapajós são compreensíveis. Foi em 2001 que a Funai enviou à região do baixo Tapajós o primeiro Grupo Técnico (GT), que produziu um Relatório reconhecendo a legitimidade histórico-cultural e social destas reivindicações indígenas. Em 2003, com o anúncio da vinda do GT de Identificação e Delimitação das terras dos Munduruku na Flona, foi suscitado um contexto de “conflito” que seria provocado pelos indígenas. Moradores das comunidades não-indígenas reclamavam que a demarcação iria “tomar” as suas terras e expulsar-lhes da área.
Representantes do Ibama e de Ongs se referiam à existência de um “clima de guerra” entre índios e não-índios. Antropólogos, diretores da Funai, MPF e líderes indígenas esclareceram que aquele temor não tinha fundamento.
Enquanto isso, sem alarde, pesquisas etnográficas com longos meses de campo eram realizadas nas aldeias do baixo Tapajós. Em 2005, foram defendidas duas teses de doutorado sobre os Munduruku da Flona, uma nos EUA, e outra na Espanha. Em 2008, veio mais uma tese de doutorado, sobre indígenas no rio Arapiuns. Foram trabalhos elaborados com rigor científico e que passaram pela avaliação de bancas de alto nível, que estão disponíveis para consulta e muito tem contribuído para o avanço do conhecimento sobre tais povos.
Em 2007, devido à reação dos indígenas no rio Maró contra a invasão das suas Terras por empresários vindo do Centro Oeste, surgiu mais uma onda de calúnias. Em jornais de Santarém líderes eram apontados como “falsos índios”. Em julho de 2008 a Funai enviou os GTs para identificar as TI Cobra Grande, Maró (rio Arapiuns) e Borari (Alter do Chão).
A campanha negando a existência de indígenas no Maró e em toda a região se acirrou, mostrando o poder político e econômico dos que estavam por traz das acusações. Mesmo assim, o reconhecimento oficial do Estado sobre as TI na região avança. Em 2009, foram publicados no Diário Oficial da União (DOU) os Relatórios de Identificação das duas TI dos Munduruku na Flona Tapajós, e em 2011 foi publicado o Relatório da TI Maró.
Nestes 20 anos de pesquisa de campo sobre os povos indígenas no baixo Tapajós, que resultaram também numa tese de doutorado (UFBa, 2010), tenho escutado muitas histórias desses moradores. Enquanto falam das suas origens, suas tradições e seus lugares de memória, eles afirmam identidades próprias, com seus respectivos projetos de futuro. Foi assim que se conservaram e se recriaram durante séculos. Recentemente, recuperaram um orgulho étnico até então nem notado e a consciência de ter direitos. Isso tem a ver com trabalho educativo da Igreja Católica, do Grupo Consciência Indígena (GCI) e dos vários movimentos sociais. O que faço é escutar estas histórias, escrevê-las e juntar com outras histórias já escritas, e recontá-las.
* Programa de Antropologia e Arqueologia – PAA/ICS/Ufopa. Texto
publicado originalmente na Gazeta de Santarém.