Por
Eliane Brum*
Tudo indica que isso que estamos vivendo não é a
realidade
Quando o sol nasceu com a indiferença de sempre em 22 de dezembro,
perguntei a um insistente apocalíptico das minhas relações como ele explicava
que o mundo não havia acabado, tal qual ele havia repetido durante o ano
inteiro como um mantra. Ele me desferiu um olhar de pena e respondeu, altivo:
“E você achou que o mundo acabaria em fogo e fumaça”?
Achei a
resposta um tanto 171, mas os primeiros meses deste ano começam a me assombrar.
E se ele tinha razão, o mundo acabou, e eu agora me encontro numa espécie de
realidade paralela? O primeiro sinal apareceu dias depois do apocalipse que
parecia não ter acontecido, quando José Sarney (PMDB) defendeu, numa entrevista
publicada na Folha de S. Paulo de 31 de dezembro,
que ex-presidente deveria ser proibido de disputar eleição. “Acho que
deveríamos ter uma legislação que não permitisse a nenhum ex-presidente da
República, deixando o governo, que voltasse a qualquer cargo eletivo”, afirmou
o homem que chegou à Câmara dos Deputados em 1955. Depois de deixar a
presidência da República, em 1990, foram três mandatos como senador e mais de
duas décadas ininterruptas no Congresso. Agora, em vias de aposentamento,
defendia que para os outros deveria ser proibido. Estranho, muito estranho,
desconfiei. O ano virou, e a realidade continuou ainda mais fantástica do que o
habitual. Fantástica demais para ser confiável.
Uma série
de acontecimentos tem me feito duvidar da realidade. E, na quarta-feira da
semana passada, 13 de março, simplesmente parei de acreditar. Nesta data, a
Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos
Deputados aprovou o projeto de lei 6167, de 2009, batizando de “Rodovia Cecílio
do Rego Almeida” o trecho da BR-277 localizado entre as cidades de Paranaguá e
Curitiba, um dos principais da região sul do país. Ao ler a notícia, puxei da
memória: “Cecílio do Rego Almeida, conhecido desde a ditadura militar como ‘Dom
Ciccillo’? Aquele que foi chamado pela imprensa de ‘o maior grileiro do
mundo’”? Não, claro que não.
Procurei
o nome do autor do projeto: deputado André Vargas, atual vice-presidente da
Câmara. Não, tive certeza que não. Como um deputado do PT, partido apoiado por
boa parte dos movimentos sociais da Amazônia (hoje com bem menos afinco que na
década passada), faria uma homenagem póstuma ao homem acusado de uma área quase
equivalente à soma dos territórios da Bélgica e da Holanda, na Terra do Meio,
no Pará? Um reconhecimento público ao homem que se apossou de terras públicas,
terras indígenas e até de assentamentos do Incra? Impossível, eu já concluía,
quando vi no Twitter uma manifestação do deputado José Mentor, também do PT,
anunciando, aparentemente com orgulho, que havia sido o relator do projeto,
aprovado nessa última comissão.
Senti
aquela vertigem cada vez mais familiar, sem saber se acreditava na lógica, que
me dizia ser impossível, ou no que tentam me fazer acreditar que é a realidade.
Entrei no site da Câmara e lá estava o projeto, aprovado em três comissões (a
de Educação, a de Viação e Transportes e a CCJC). Fui conferir a justificativa
do autor, deputado André Vargas: “A denominação que se pretende conferir ao
trecho citado é uma justa homenagem ao Sr. Cecílio do Rego Almeida, empresário
fundador e presidente do Conselho de Administração do Grupo CR Almeida, que
reúne mais de 30 empresas e atua nas áreas de construção pesada, concessão de
rodovias e logística de transporte, química e explosivos”. E, ao final: “Seu
trabalho foi perseverante em seu objetivo, e agora, após a sua morte (...),
este benemérito cidadão poderá receber a merecida homenagem”.
Me
parecia evidente que eu estava sofrendo de alucinações. “Dom Ciccillo” seria
homenageado por sua “perseverança”? Qual “perseverança”? Com certeza não a de
se se apropriar de cerca de 6 milhões de hectares de floresta amazônica, num
reino apelidado como “Ceciliolândia”. Merecida homenagem a “Dom Ciccillo”? O
mesmo homem que, numa entrevista à revista Caros Amigos,
chamou Marina Silva, então ministra do Meio Ambiente, de “uma indiazinha
totalmente analfabeta e doente”?
Assim como
definiu o ex-governador do Rio Grande do Sul Olívio Dutra como “um bicha, que é
veado”? E se referiu a Chico Mendes como “esse seringueiro que se fodeu”? (Os
leitores me perdoem a deselegância, mas as frases são do homenageado e,
portanto, se justificam no contexto.) Na mesma entrevista, de 2005, “Dom
Ciccillo” assim se refere à ditadura militar, que muitas grandes obras concedeu
à sua empreiteira – e também ao partido do autor do projeto de lei, que agora
faz a ele uma homenagem póstuma: “Entendo que foi uma ditadura, mas a mais leve
das ditaduras. Hoje existe uma ditadura no PT mais forte que a dos militares”.
Não é
óbvio, evidente, claríssimo que o projeto de lei não é real? Eu estou com a
página daCâmara aberta diante de mim, mas só
pode ser uma conspiração. A página verdadeira deve ter sido substituída por
esta, falsa. Não acreditei nem por um minuto. “Dom Ciccillo”, homenageado pelos
serviços prestados ao Brasil? Fiquei imaginando a cara de Raimundo Belmiro e
muitos outros da Terra do Meio, que testemunharam a atuação
de “Dom Ciccillo” na Amazônia, ao tomar conhecimento de que essa piada
circulava no país como coisa séria. Quem seria o néscio que acreditaria numa
coisa dessas? Eu é que não. E acreditei ainda menos quando li na Gazeta do Povo, do Paraná, que, por
coincidência, a rodovia batizada com o nome de “Dom Ciccillo” é a mesma em que
uma das empresas da CR Almeida administra o pedágio. Não, é claro que isso não
está acontecendo.
Já não
tinha acreditado no que me garantiam ser a realidade quando o Incra destinou um
lote de terra à mulher do homem que será julgado pelo assassinato de José Cláudio
Ribeiro e Maria do Espírito Santo. Para quem não lembra, os
dois líderes extrativistas foram mortos numa tocaia, em maio de 2011, em Nova
Ipixuna, no Pará. Tiveram pulmões e corações perfurados, e uma orelha de José
Cláudio foi arrancada para comprovar a execução. O julgamento de José Rodrigues
Moreira, acusado como mandante, e dos dois supostos executores do crime está
marcado para 3 de abril. Mas no início de março foi divulgado que o Incra havia
concedido um lote de terra à mulher de Moreira, a mesma área da qual ele tentou
expulsar três famílias e só não conseguiu por causa da resistência de José
Cláudio e Maria. Em resumo: o homem acusado de ordenar um duplo homicídio
ganhou do Estado a concessão da terra que motivou o conflito. Uma espécie de
prêmio.
Alguém
acredita que o Incra cometeria uma barbaridade dessas? Eu nunca acreditei. E,
como já não acreditava, também não levei a sério quando o Incra afirmou ao Ministério Público Federal que a
concessão do lote foi um “equívoco” – e que a área seria retomada pela via
jurídica.
Minha
resistência em acreditar numa realidade que parece ficção de quinta categoria
já havia sido testada antes, quando o deputado Marco Feliciano (PSC), pastor
evangélico de sua própria igreja, a “Catedral do Avivamento”, se tornou
presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Marco
Feliciano? Eu só conhecia um. Este, entre outros barbarismos, havia afirmado o
seguinte: “Os africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé”. E ainda
diria: “O reto não foi feito para ser penetrado”. Logo, não poderia ser este
Marco Feliciano o presidente de uma comissão destinada a zelar pelos direitos
de, entre outras minorias, negros e homossexuais. Portanto, é óbvio que eu não
podia acreditar. E não acreditei.
Se fosse
do tipo crédulo, como tantos por aí, eu acreditaria não só que o deputado Marco
Feliciano é presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara,
mas também que o senador Blairo Maggi (PR), ruralista que chegou a ganhar o
“Motosserra de Ouro”, troféu do Greenpeace destinado a quem mais colabora com a
devastação, é o presidente da Comissão de Meio Ambiente do Senado. Teria de
acreditar inclusive que o deputado João Magalhães (PMDB), que responde a três
inquéritos no STF (peculato, tráfico de influência e crime contra o sistema
financeiro), é o presidente da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara. E
teria de acreditar até mesmo que Renan Calheiros (PMDB), que em 2007 renunciou
à presidência do Senado por suspeita de corrupção, é hoje de novo o presidente
do Senado.
Quem
acredita nisso? Eu não.
* Eliane
Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma
Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes –
O avesso da lenda(Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago,
Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em busca da
literatura da vida real (Globo). Escreve às segundas-feiras para o sítio da Revista Época.