Por Lúcio Flávio Pinto*
A pá de cal na maior grilagem de
terras do mundo foi dada pelo próprio grileiro – ou melhor, pelos seus
sucessores. Os herdeiros de Cecílio do Rego Almeida perderam o prazo para
apelar da decisão do juiz Arthur Pinheiro Chaves, da 9ª vara da justiça federal
em Belém.
O
juiz mandara cancelar o registro imobiliário da Fazenda Curuá. A matrícula foi
feita no cartório de Altamira, em nome da Incenxil, empresa nativa da região,
que passou ao controle do dono da Construtora C. R. Almeida, do Paraná, em
1995.
No
dia 4 de janeiro, o juiz deixou de receber a apelação, “vez que manifestamente
intempestiva”. Anteriormente ele também não tomara conhecimento dos embargos
opostos contra a sentença. Ela determinou a anulação e o cancelamento da
matrícula, transações e averbações no registro de imóveis de Altamira, a pedido
do Ministério Público Federal. O MPF tomou como base para sua ação um pedido
inicial feito pelo Iterpa (Instituto de Terras do Pará). Assim, a sentença
transitou em julgado.
Ainda
há um recurso disponível aos familiares do grileiro. É a ação rescisória. Ela
pode ser proposta no prazo de dois anos a partir do trânsito em julgado da
sentença, que ocorreu em janeiro deste ano. O prazo ainda pode ser dilatado
porque os autos estão com o MPF para manifestação. Seria mais fácil, porém, se
eles tivessem apelado, através de um recurso ordinário, no prazo legal. Por que
não o fizeram?
É
pouco provável que tenha sido por desatenção ou esquecimento, embora esta
hipótese sempre esteja presente, mesmo quando atua na causa um poderoso
escritório de advocacia. Se agiram dessa forma de caso pensado, qual a razão
dessa estratégia?
Presume-se
que a morte de Cecílio Almeida, em março de 2008, aos 78 anos de idade, tenha
posto fim ao componente de impetuosidade e selvageria que ele impôs à condução
dos seus negócios, que centralizou com mão de ferro.
A
empresa, que é uma das maiores empreiteiras do país e diversificou suas
atividades, passando também a gerenciar rodovias públicas, beneficiando-se do
processo de privatização, deve ter-se profissionalizado. Pode também ter se
livrado do passionalismo, a marca do seu fundador, ao passar para o domínio da
sua família e seus representantes executivos.
Mergulhando
nas sutilezas da manobra feita por Cecílio para se apossar da mais valiosa
gleba de terras ainda não ocupada no Pará, podem-se encontrar as motivações
para o procedimento insólito. Talvez seja a maneira de perder a joia da coroa
para manter a pretensão sobre a coroa de ouro.
A
Fazenda Curuá, envolvida na ação, é a maior das áreas do conjunto de imóveis
sobre os quais Cecílio Almeida se lançou com voracidade, quase duas décadas
atrás. Mas não é a única. Há mais cinco glebas compreendidas na tentativa de
apropriação ilícita. São os seringais: Belo Horizonte, Humaitá,
Caxinguba, Mossoró e Forte Veneza. Seus pretensos domínios se superpunham à
Estação Ecológica da Terra do Meio e às terras indígenas Ipixuna e
Apyterewa.
Daí
a vasta imprecisão sobre a extensão desse território pretendido variar entre o
mínimo calculado, de 4,7 milhões de hectares, e o máximo referido, com ênfase
decrescente, também com propósitos táticos, de 7 milhões de hectares. Entre as
duas grandezas, 2,7 milhões de hectares já seriam suficientes para lhe manter o
título de a maior grilagem mundial de terras ainda em curso.
O
golpe maior foi evitado, mas outros atos de pirataria fundiária ainda podem ser
praticados. Para que a ameaça seja erradicada de vez do horizonte das possibilidades
legais, o Ministério Público Federal, que obteve o cancelamento do registro
imobiliário da Fazenda Curuá, terá que dirigir seu alvo para as demais glebas,
incluídas no acervo patrimonial da Incenxil. Já há ações em curso referentes a
essas terras.
Só
quando não houver mais remanescente algum da pretensão inicial de Cecílio do
Rego Almeida é que o povo paraense poderá ter certeza de que um dos seus
patrimônios mais valiosos estará restituído de vez ao seu legítimo dono, ainda
que atingido pelos prejuízos que os pretensos proprietários lhe causaram nesse
período de usurpação.
Outra
interpretação para a perda de prazo do recurso poderia ser feita a partir de
uma ameaça que o próprio Cecílio fez. Ele disse, reiteradas vezes, que se
“suas” terras lhe fossem retiradas, ele ingressaria na justiça com uma ação
regressiva contra o Estado do Pará. Cobraria todos os seus prejuízos e os
lucros cessantes. Seria questão para chegar aos bilhões de reais. Uma causa
muito maior do que o da Fazenda Paraporã, que cobra indenização do governo
desde os anos 1970 por uma desapropriação mal feita.
É
triste – mas ilustrativo – constatar que a preservação desse bem foi obra de um
agente público federal e não dos entes estaduais que participaram do rumoroso
capítulo da história da subtração de terras do patrimônio público do Pará. No
que dependeu dos poderes executivo, legislativo e judiciário do Estado, o
interesse público diretamente envolvido na questão saiu gravemente prejudicado.
Se
dependesse de atos das autoridades públicas paraenses, as ricas terras do vale
do Xingu, laçadas pelo interesse especulativo do empresário, teriam mudado
ilicitamente de dono. Os poderes públicos estaduais cometeram, nesse episódio,
um de seus atos mais clamorosos e lesivos. Por isso a história não deve ser
esquecida, com todos os seus personagens nefastos. É a história que continuo a
contar, com novos detalhes e maior profundidade. Na esperança de assim inibir
os malfeitores e prevenir os malfeitos, dos quais a história omissiva do Pará
contemporâneo tem sido pródiga.