Por Merces Castro*
Em julho de 2010, o GTT
(grupo governamental criado para cumprir a sentença da 1ª. Vara Federal, ou
seja, localizar, recolher e entregar os restos mortais dos “desaparecidos” na guerrilha
do Araguaia) foi fazer uma escavação na antiga base militar da Bacaba, na
Transamazônica, onde uma pessoa, que havia ali trabalhado, me apontara dois
lugares onde possivelmente tinha corpos enterrados.
No primeiro local foram
encontrados grandes blocos de concreto que formavam uma imensa caixa e onde no
passado era depositado lixo hospitalar. Ali nada foi encontrado. No segundo
ponto, o detector indicou a presença de grande quantidade de metal. A
exploração mostrou que era um carro enterrado décadas antes.
Pedi para tirarem o carro
inteiro, mas por questões que desconheço fizeram o trabalho como visto no vídeo. Junto aos destroços do carro encontrou-se o pé de
uma sandália infantil, o que me levou a questionar: O que realmente havia por
trás daquele carro? Porquê estava tão bem escondido?
Em novembro passado fui
contatada por um pastor de uma igreja protestante de uma denominação qualquer
situada em Belém. Alegando arrependimento, disse que soubera que o carro da
Bacaba fora encontrado e por isso faria contato com uma pessoa que poderia me falar
mais sobre o episódio.
O encontro com essa pessoa
ocorreu semana passada em Santarém. Antonio, o nome dele, era o dono do carro.
Tem marcas de tiros no rosto, no abdome e nas pernas, tantos que destruíram
partes de seus pés. Lembrou-me o Quasímodo. Sabe apenas que é de São José de
Ribamar, cidade vizinha a São Luís/MA e na adolescência foi para Osasco onde
fez família e progrediu.
Certo dia, no final de 1973,
colocou no carro a sogra, a esposa e a filha de dois anos e meio, ambas Maria
Helena, das quais não lembra as suas fisionomias e seguiram para o norte
conhecer o eldorado.
Antonio nada sabia de
guerrilha, por isso saiu da Belém-Brasília e entrou na Transamazônica ao
entardecer. Pretendia dormir em Marabá. A estrada de piçarra estava boa e seu
carro desenvolvia certa velocidade.
Absorto em seus pensamentos,
apenas ele estava acordado. Mas ainda não eram oito da noite. Um barulho
intenso de lata sendo rasgada e vidros estilhaçados indo de encontro ao seu
rosto o fizeram perder o controle do veículo. O carro fora metralhado.
Antonio lembra que acordou
num leito de hospital totalmente desmemoriado. Não lembrava nem do próprio
nome. Enquanto se recuperava era submetido a constante interrogatório
disfarçado de ajuda social e foi “visitado” pelo piloto de helicóptero que o
socorrera.
Ao recuperar-se fisicamente,
Antonio foi submetido a uma “lavagem cerebral”. Entregaram-lhe documentos com
os quais se identifica até hoje, disseram-lhe que era originário de Santarém e
funcionário do serviço público federal, pelo qual está aposentado. Em Santarém
foi levado para “sua” casa onde ainda mora.
Lembro a todos que a cerca
de dois meses liguei para um dos coordenadores do GTA pedindo que alguém fosse
mandado a Santarém. Sugeri até o nome de uma das historiadoras contratadas, mas
foram palavras ao vento. A moça estaria ocupada e ficou por isso mesmo.
Por ter conversado com
Antonio por telefone, antes de ir a Santarém, peticionei à 1ª. Vara Federal e
OEA pedindo urgentes e definitivas informações acerca de eventuais perícias
efetuadas nos restos do carro encontrado na Bacaba.
E o pastor? O piloto de
helicóptero que levara Antonio a Belém, foi para a reserva como Tenente-Coronel
e converteu-se ao protestantismo. Ia com frequência a Santarém e numa dessas
idas encontraram-se. Os contatos frequentes trouxeram parte da memória de Antonio
de volta.
Apesar de ainda não lembrar
o nome da família, tem sonhado com a filha que lhe trás a mensagem de que logo,
logo, estarão juntos. Imagina que sua vida está no fim e por isso prefere não
buscar a verdade total sobre sua vida. Talvez essa busca não valha a
pena.
Voltei dilacerada e me
perguntando se esse poço tem fundo.
*Merces Castro é advogada,
militante e irmã do desaparecido Antônio Teodoro de Castro.