sexta-feira, 29 de março de 2013

Contra armas não há argumentos

Mundurukus - Foto: Telma Monteiro
Por João Rafael Diniz*

Num texto publicado em NOV 2011 no site Viomundo, o professor Pablo Ortellado analisa o que nas suas palavras seria a "cortina de fumaça" constituída em torno da temática da segurança pública dentro da Universidade de São Paulo.

Naquele momento, estava em curso uma escalada crescente de militarização e presença policial ostensiva dentro da campus Butantã, na capital paulista, supostamente em razão da falta de segurança do local (muito amplo e ermo à noite) e a ocorrência de um caso de tentativa de roubo seguido da morte de um estudante de biblioteconomia, em pleno estacionamento.

Preocupado com a “retórica do medo” e as reais intenções da reitoria em utilizar a força policial para a repressão do movimento estudantil e sindical dentro da universidade (o que depois efetivamente ocorreu), Ortellado expõe em seu texto a questão que considera principal: a USP é a mais antidemocrática das universidades paulistas, e argumenta:

Maquiavel, teórico da política, defendia numa obra famosa (os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio) que a causa da intensa e fratricida violência política da cidade de Florença era a não institucionalização dos seus conflitos. Em Florença, dizia Maquiavel, cada partido (os guelfos e os gibelinos, os negros e os brancos, os nobres e o povo) consolidavam a vitória com a expulsão do partido adversário da vida política da cidade – de maneira que só restava ao grupo derrotado atuar de fora do jogo político estabelecido, preparando um golpe de estado. O resultado era uma vida política violenta e sanguinária, sem estabilidade política e sem paz interna.

Para ele, a ausência de canais para a participação da comunidade acadêmica na vida da universidade, e a forma institucional arcaica e excludente com que a reitoria concentra o poder, acabam por empurrar os setores não alinhados ao grupo dominante para a ação extra-institucional, via de regra violenta – “simplesmente por falta de opção”, acrescenta.

A investida da Força Nacional de Segurança Pública, esta semana, contra a terra indígena dos Munduruku, a fim de garantir a atuação de 80 técnicos responsáveis pelos primeiros levantamentos de impacto ambiental dos projetos de barramento no rio Tapajós, guarda uma relação direta com o estreitamento do campo político dentro da USP, ou mesmo com o conturbado panorama social da Florença medieval.

Na última década de governo petista, assistimos de perto a extinção dos canais legítimos para participação da chamada “sociedade civil” na definição dos rumos da política nacional nos seus variados setores. Quem se apresentava como promessa de governo mais democrático e aberto à participação popular acabou se transformando em fiel defensor do latifúndio, do capital financeiro, e dos interesses dos grandes grupos econômicos.

O caminho iniciado por Lula, e aprofundado por Dilma, se vale da popularidade para justificar a atuação surda no planejamento e execução das políticas de Estado, como se o resultado eleitoral e os eventuais índices de aprovação fossem sinônimo de um cheque-em-branco dado pelo povo ao governo, para atuar da maneira que achar mais conveniente, e onde bem entender. O exemplo mais bem acabado dessa realidade é a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

O processo em curso, que compreende os projetos de barramento nos rios Xingu, Tapajós, e dezenas de outros, mas também os grandes corredores de exportação de soja, e a viabilização da mineração em áreas indígenas (mesmo à revelia da vontade dos povos), assume o modus operandi padrão de desconsiderar por completo os interesses e visões de mundo das populações que terão suas vidas diretamente comprometidas pelas obras e projetos. Vozes dissonantes são ignoradas, ou por vezes caladas, enquanto a locomotiva do progresso segue rasgando seu caminho.

A chegada da Força Nacional de Segurança Pública à cidade de Itaituba, no oeste do Pará, é o sintoma evidente e atual do estreitamento político no campo de debate sobre os rumos do país e do futuro das regiões, a partir da perspectiva das populações diretamente interessadas e afetadas pelas propostas. Nos próximos dias, uma nação de quase dez mil indígenas Munduruku terá seu território invadido por tropas federais, a fim de levar a cabo trabalhos técnicos que são o primeiro passo palpável da destruição de seu modo de vida.

Tal como os guelfos ou gibelinos de Florença, os Munduruku estão excluídos do campo de decisão sobre o destino de suas próprias vidas e dos caminhos da política estatal. Não há diálogo possível nem capacidade alguma de influência sobre o que está para acontecer com o rio que lhes é essencial para a existência enquanto povo.

Na ausência de um campo democrático para o diálogo inter-povos sobre o futuro do Tapajós e da política de desenvolvimento nacional, restará aos Munduruku atuar do lado de fora do jogo institucional estabelecido, ou seja, no campo da violência. Para Dilma restarão duas opções: ou tenta corromper as lideranças indígenas com o caixa-forte do Estado, ou constitui pra si um corpo militar de intervenção interna, capaz de garantir pela força a prevalência do interesse central sobre os povos ameaçados. O recentes decreto presidencial 7.957/2013 e a Portaria MJ 1.035/2013 são o primeiro sinal de qual decisão foi tomada.

*Mestrando em Geografia pela USP.
@joaoninguem
Comentários
1 Comentários

1 comentários:

Mônica disse...

A violência institucional contra a autonomia de grupos tradicionais e respeitados da sociedade civil organizada – estudantes universitários e povos indígenas reconhecidos – não remete aos entraves entre guelfos e gibelinos (aristocracia da Igreja Romana X elite burguesa laica), uma luta entre iguais em força, que desemboca, dois séculos depois, no Renascimento. A analogia política correta para o atual uso dos “aparelhos repressivos do Estado” é mais do tipo: ditadura militar, fascismo, maioria republicana no poder, imperialismo econômico e, para mim o pior de todos, o pragmático e capilarizado tecnicismo-partidário do PT de hoje, que “sabe o que é melhor para o país”... Mas dá medo, traz a lembrança de outros medos essa situação triste.