quarta-feira, 11 de abril de 2012

Hidrelétrica de Santa Isabel pode cobrir corpos de guerrilheiros do Araguaia

Esta notícia está no Jornal Valor de hoje (11/04/2012):


Rio Araguaia - Usina de Santa Isabel pode sair do papel


Dez anos depois de seu leilão, o projeto de construção da hidrelétrica começa a se viabilizar por meio de duas decisões oficiais 

Usina no rio Araguaia, com potência de 1.087 MW e tocado por grandes empresas, teve EIA-Rima várias vezes negado pelo órgão ambiental 

Dez anos depois de seu leilão, o projeto de construção da hidrelétrica de Santa Isabel, um dos empreendimentos de geração de energia mais polêmicos do Brasil e tido como descartado, começa a se viabilizar por meio de duas decisões oficiais.  No dia 26, o Ibama, que havia rejeitado o projeto várias vezes, decidiu que os estudos de impacto ambiental estão tecnicamente corretos, o que permitirá que o consórcio de empresas organize audiências públicas sobre a obra, a ser erguida no rio Araguaia, na divisa entre Tocantins e Pará.  Ontem, a Aneel decidiu prorrogar a concessão do empreendimento por 34 anos, prazo que só passará a contar quando sua licença prévia for emitida pelo Ibama

O projeto de construção da hidrelétrica de Santa Isabel, um dos empreendimentos de geração de energia mais polêmicos do Brasil, conseguiu dar dois passos fundamentais nas duas últimas semanas para que a usina, leiloada há dez anos, se torne realidade.  A primeira vitória dos empreendedores responsáveis pela obra - o consórcio Gesai, formado pelas empresas Alcoa, BHP Billiton, Camargo Corrêa, Vale e Votorantim Cimentos - foi dada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

No último dia 26, apurou o Valor, o Ibama, que muitas vezes reprovou o projeto da hidrelétrica, tomou uma decisão favorável em relação ao Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e ao Relatório de Impacto Ambiental (Rima) de Santa Isabel.  Para o Ibama, os estudos atuais estão tecnicamente corretos.  Com essa decisão, o consórcio fica agora livre para realizar a etapa de audiências públicas da obra, onde os estudos serão submetidos à população afetada pela construção.  Colhidas as manifestações, o Ibama decidirá pela emissão - ou não - da Licença Prévia (LP) do empreendimento.

Outra medida crucial para o futuro de Santa Isabel partiu ontem da Agência Nacional de Energia Elétrica.  Em uma decisão inédita da agência, sua diretoria colegiada decidiu prorrogar a concessão do empreendimento por 34 anos, prazo que só passará a contar quando a LP da hidrelétrica for efetivamente emitida pelo Ibama.

As decisões tomadas pelo Ibama e pela Aneel ajudam a tirar da gaveta um projeto que, para muitos, já era dado como morto.  Estudada há mais de 40 anos, a usina de Santa Isabel foi projetada para ser erguida no rio Araguaia, na divisa do Tocantins e do Pará.  Com capacidade instalada de 1.087 megawatts (MW) - e energia assegurada de 532,7 MW médios - sua geração é o suficiente para atender o consumo de 4 milhões de pessoas, o que corresponde a 60% da população do Pará.  Seu contrato foi assinado em abril de 2002 com o grupo Gesai, pelo preço de aproximadamente R$ 1,7 bilhão a ser pago durante os 35 anos da concessão.  Nos últimos dez anos, porém, o consórcio não conseguiu cravar uma enxada no chão.  Uma batalha de revezes ambientais, sociais e políticos chegou a levar seus empreendedores a tentar devolver a concessão à Aneel, o que acabou não se concretizando.

As divergências do projeto, de fato, não são poucas, tampouco simples de serem resolvidas.  Santa Isabel está prevista para ser construída no local que esconde um dos sítios arqueológicos mais ricos do país.  No seu caminho também fica a região que serviu de palco para a polêmica Guerrilha do Araguaia, no fim da década de 1960 (ver textos abaixo).

Para viabilizar o projeto e se afastar de questões polêmicas como essas, o consórcio Gesai se viu forçado a reformular radicalmente o projeto de engenharia da usina.  O exemplo mais claro dessa mudança foi a redução do reservatório desenhado para o empreendimento.  A estrutura atual projeta uma barragem nove vezes menor do que a prevista nos estudos originais para a instalação da hidrelétrica, realizados na década de 1980.  Em vez de ocupar uma área de 3 mil quilômetros quadrados, com uma queda de água de mais de 40 metros, o novo projeto passou a prever um reservatório de 236 quilômetros quadrados, já incluindo nesta conta a calha natural do rio.  A mudança encolheu drasticamente a região alagada e reduziu a queda d"água para 26 metros de altura.  Em extensão, a previsão é de que 108 quilômetros do Araguaia sejam afetados diretamente pela barragem.

Segundo o consórcio Gesai, as alterações fizeram com que apenas uma terra indígena - a Sororó - e duas comunidades quilombolas - Pé de Morro e Projeto Baviera - estejam na área de influência direta da usina.  Em 2010, a população total que vive na área diretamente atingida pelo projeto foi estimada em 4.800 moradores, com 1.496 propriedades.  No período de construção do empreendimento, o consórcio Gesai prevê a contratação de aproximadamente 5 mil pessoas.

Segundo o diretor-geral da Aneel, Nelson Hubner, ainda há decisões sobre Santa Isabel que devem ser tomadas pela Secretaria do Tesouro Nacional.  O consórcio Gesai solicitou que a taxa anual de Uso do Bem Público (UBP) assumida no contrato de concessão deixe de ser corrigida pelo índice do IGPM e passe a ser corrigida pelo IPCA.  Hubner argumentou, no entanto, que essa decisão cabe ao Tesouro.

Procurado pelo Valor, o consórcio Gesai não quis comentar as decisões do Ibama e da Aneel.  Ontem, após reunião pública realizada na sede da agência, em Brasília, representantes do grupo comemoraram discretamente a decisão da diretoria colegiada.  "Perdemos um ano, mas ganhamos 34", disse um dos executivos, que não quis se identificar.

A previsão é de que oito municípios sejam afetados pela obra: Ananás, Araguanã, Xambioá, Riachinho e Paragominas, na margem do lado de Tocantins; Piçarra, São Geraldo do Araguaia e Palestina do Pará na margem do lado paraense.  De acordo com o Ibama, agora caberá ao consórcio Gesai preparar a divulgação dos estudos de impacto ambiental do projeto.  O instituto fica com a responsabilidade de coordenar as audiências públicas, enquanto os empreendedores prestam os esclarecimentos.

Dado o histórico da usina de Santa Isabel, o empreendimento não chegou a constar no Plano Decenal de Energia do ano passado, relatório da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) que prevê a entrada de novos projetos em operação nos próximos dez anos.  Agora, com o vento a favor, tudo indica que a hidrelétrica caminha efetivamente para os planos de expansão do governo, principalmente quando se trata de projetos na região amazônica.

Lago pode cobrir corpos de guerrilheiros do Araguaia 
Os obstáculos no caminho da hidrelétrica de Santa Isabel não estão restritos a danos socioambientais ou arqueológicos.  O que está em jogo é a perda de um importante capítulo da história recente do país.  É na região projetada para receber a usina que ocorreu a Guerrilha do Araguaia, na década de 1960, quando um grupo de militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), recrutado nas regiões Sudeste e Nordeste do país, montaram uma frente de resistência contra o governo militar.

O plano era dar início a um movimento de guerrilha rural no Brasil.  Os militantes se agruparam na região de confluência dos Estados de Goiás, Maranhão e Pará.  Em 1968, quando os militares intensificaram a repressão aos movimentos urbanos de resistência ao regime, militantes começaram a se deslocar para a região do Araguaia.  Nos combates, dezenas foram executados.  Em meados da década de 1970, o movimento guerrilheiro foi praticamente banido da região, com seus militantes presos ou mortos, sem que fossem dados detalhes sobre os desaparecidos.  A estimativa é de que cerca de 80 guerrilheiros se envolveram na guerrilha, entre eles o ex-presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), José Genoíno, detido pelo Exército em 1972.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), historicamente contra a construção de Santa Isabel, alega que até hoje a área onde será formado o reservatório da hidrelétrica pode esconder os corpos de 58 pessoas executadas durante os combates com os militares.

O governo, pressionado pelos movimentos sociais e políticos e organizações de familiares de desaparecidos, reiniciou as atividades de busca dos restos mortais de guerrilheiros e militares, conforme aponta o estudo de impacto ambiental realizado pelo consórcio Gesai.  O trabalho, liderado por um grupo denominado "Grupo de Trabalho Tocantins", é formado por membros da Polícia Federal, Exército, peritos forenses do Ministério da Defesa e governo do Pará, além de parentes de guerrilheiros mortos e desaparecidos durante a guerrilha.

Para os empreendedores de Santa Isabel, a polêmica está perto de seu fim.  Em seu relatório, o grupo afirma que "os resultados das investigações realizadas até o momento têm conduzido a possíveis locais de enterramento dos desaparecidos, aparentemente fora da área que será ocupada pelo futuro reservatório". 

Usina põe em xeque raro sítio arqueológico do país 

A barragem de Santa Isabel põe em xeque um dos sítios arqueológicos mais ricos do país.  A chamada Ilha dos Martírios, onde já foram identificadas mais de 3 mil gravuras rupestres, deverá ficar completamente embaixo d"água, após o enchimento do reservatório da usina.

A constatação faz parte do próprio relatório ambiental preparado pelos empreendedores de Santa Isabel.  Em toda a bacia do rio Araguaia, o estudo constatou a existência de 568 sítios arqueológicos.  Segundo o estudo, os sítios que se encontram na área diretamente afetada pela obra correspondem principalmente aos sítios de arte rupestre, dentre os quais destacam-se a Ilha dos Martírios e o Sítio Pedra Escrita.  "Estes, deverão receber maior cuidado, pois serão submersos pelo reservatório", informa o Gesai.  Do total de sítios, 57 encontram-se na área diretamente afetada pelo empreendimento.

As ações recentes que aproximam cada vez mais o projeto de Santa Isabel de sua viabilidade podem minar os planos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).  Desde o ano passado, estava em curso um processo no instituto para conseguir o tombamento da região, decisão que tornaria Santa Isabel inviável de uma vez por todas.  Essa iniciativa, no entanto, apurou o Valor, não avançou de lá para cá.

A riqueza arqueológica da Ilha dos Martírios é estudada desde o século XVIII.  A ilha, cuja parte fica submersa durante seis meses por conta das cheias anuais do Araguaia, foi batizada pelos bandeirantes de "Martírios" por conta das gravuras que tem.  Trata-se de desenhos parecidos com os instrumentos utilizados no martírio de Cristo, como coroas de espinhos, cravos, martelos, cruzes e lanças.  No sítio Pedra Escrita, lajeiros com gravuras rupestres somam 109 painéis já catalogados, com 586 figuras.

De acordo análises feita pelo Iphan, os sítios arqueológicos Ilha dos Martírios, Pedra Escrita e Ilha de Campo, todos vizinhos ao longo do rio Araguaia, integram a segunda maior área de concentração de sítios com arte rupestre do Pará.  "Os sítios são de grande importância científica e patrimonial.  Trata-se, sem dúvida, de um dos mais ricos em arte rupestre do Brasil.  Com efeito, conhecem-se apenas dois sítios com maior quantidade de gravuras registradas no país, ambos na região de Montalvânia (MG)", sustenta o Iphan.


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