Teve início neste 18 de abril, no
Supremo Tribunal Federal, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) n° 3239, na qual se discute a extensão do direito constitucional de
acesso ao território para comunidades quilombolas. O resultado do julgamento
poderá consolidar a interpretação constitucional do direito, ou, por outro
lado, criar retrocessos históricos que trarão grandes dificuldades para a
titulação de territórios e reprodução social dos povos quilombolas.
A ADI foi impetrada pelo antigo
Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas, que alega a
inconstitucionalidade do Decreto Presidencial n° 4.887/2003.
Este decreto regulamentou o artigo 68 do Ato das
Disposições Transitórias (ADCT) da Constituição de 1988, que previu: “Aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando (em 5/10/1988)
suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o estado
emitir-lhes os títulos respectivos”.
O relator da ação, o ministro Cézar Peluso, acolheu
logo a tese básica do DEM de que o decreto era formalmente inconstitucional, já
que o dispositivo da Carta só poderia ser regulamentado por lei ordinária, oriunda
do Congresso.
“A norma constitucional há de ser complementado
por lei em sentido formal. É farta a doutrina e a jurisprudência do STF no
sentido de que a Administração Pública não pode, sem lei, criar ou restringir
direitos. Apesar de não ser o artigo 68 do ADCT de aplicação imediata, não pode
o presidente da República baixar decreto que ofenda o princípio da reserva de
lei, ainda que tal decreto revogue decreto anterior sobre a mesma matéria”,
afirmou o ministro Peluso.
O ministro não levou em conta os argumentos
“antropológicos e étnicos” levantados pelos defensores do decreto que
beneficiou, genericamente, as comunidades quilombolas. Ele considerou
totalmente inconstitucionais os principais artigos do decreto de 2003. Sobretudo
a “autoatribuição” aos supostos quilombolas de sua caracterização e do seu
direito ao que seria uma espécie de “usucapião presumido”.
Peluso também comentou que o decreto de 2003
acabou por “multiplicar expectativas que, em grande número, não são
satisfeitas, sobretudo quando está em valor a propriedade”.
O relator declarou a inconstitucionalidade do
decreto de 2003, mas propôs a modulação da decisão, a fim de não prejudicar os
quilombolas já portadores de títulos de propriedade obtidos com base no
decreto.
Logo em seguida, a sessão foi suspensa, pois a ministra
Rosa Weber pediu vista da ação.
O advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, refutou
os argumentos do DEM, afirmando que a Carta de 1988 tratou, pela primeira vez,
da “questão negra, da questão afro”, reconhecendo “claramente” a “propriedade
definitiva” das terras quilombolas aos “remanescentes” dessas comunidades “que
estejam ocupando suas terras, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos”. Ele ressaltou ainda que já foram emitidos até hoje, com
base no decreto de 2003, 110 títulos definitivos de propriedade beneficiando
11.289 famílias.
A vice-procuradora-geral da República, Deborah
Duprat, também defendeu a constitucionalidade do decreto, já que, a seu ver, a
norma não criou direito novo, mas apenas “critérios objetivos” para
facilitar a identificação das comunidades quilombolas. Segundo ela, a Carta de
1988 não considerou os homens isoladamente, mas levou em conta os “grupos
definidores de sua identidade”. Ela citou como exemplo dessa concepção
constitucional “moderna” os artigos 215 e 216, que tratam da garantia estatal
dos “direitos culturais” e do “patrimônio cultural brasileiro”, assim
considerados “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em conjunto”.
DEM
O Advogado do DEM, Carlos Bastide Horbach, na
sustentação oral, reforçou a tese de inconstitucionalidade formal do Decreto
4.887/2003, tendo em vista que o artigo 68 das disposições transitórias da
Carta de 1988 só poderia ter sido regulamenta por lei. O DEM argumenta que, de
acordo com o artigo 84 da Constituição, decreto é para regulamentar lei
ordinária e não Constituição. Além disso, contestou a validade do decreto ao
estabeleces que é de “autoatribuição” ou “autodeclaração” o critério para
identificar os remanescentes dos quilombos, e para caracterizar as terras a serem
reconhecidas como pertencentes a essas comunidades.
Para o DEM, “sujeitar a demarcação das terras
aos indicativos dos interessados não constitui procedimento idôneo, moral e
legítimo de definição”. O advogado destacou também que o decreto — como se lei
fosse — criou nova modalidade expropriatória, estendendo o dispositivo
constitucional a pessoas que não ocupavam as terras atribuídas a quilombolas na
data da promulgação da Constituição, em 5/10/1988.
Interessados
Em nome dos interessados (“amici curiae”),
falaram, dentre outros, a favor da ação de inconstitucionalidade, os advogados
da Sociedade Rural Brasileira, Ricardo de Aquino Salles, e da Associação
Brasileira de Celulose e Papel (Bracelpa), Gastão Alves de Toledo. O primeiro
deu ênfase ao fato de que só uma lei aprovada pelo Congresso poderia “definir”
o que venha a ser uma comunidade quilombola; o segundo ao fato de que a
Constituição não prevê a “propriedade coletiva”, mas apenas a propriedade pública
ou a privada.
Fizeram sustentações orais em defesa da
constitucionalidade do decreto representantes da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil, da Procuradoria do Estado do Paraná e do Instituto de
Advocacia Racial e Ambiental (Iara).
Com informações do Jornal do Brasil