Desde o
dia 08 de março, uma caminhada de indígenas e militantes sociais de várias
tendências esteve percorrendo o Equador desde a cidade de Zamora até a capital,
Quito
Elaine
Tavares*
Desde o
dia 08 de março, uma caminhada de indígenas e militantes sociais de várias
tendências esteve percorrendo o Equador desde a cidade de Zamora até a capital,
Quito. Foram 14 dias de caminhada, passando pelas cidades, conversando com a
população. A pauta principal era a defesa da água, ameaçada pelas mineradoras,
mas à marcha acabaram se somando outras consignas como a dos trabalhadores
públicos em luta contra o desemprego e a da população indignada com os altos
impostos, entre outras.
Ao longo
da caminhada foi se formando também um caldo de demonização da marcha. O alvo
principal acabou sendo a comunidade indígena, principal impulsionadora da luta
pela água, que tem vivido na pele a destruição dos rios que são sagrados para
ela. O primeiro a criar o clima de animosidade foi o próprio presidente Rafael
Correa que tão logo soube da caminhada declarou que não deixaria a “esquerda
infantil, com plumas e com ponchos” desestabilizar seu governo. Depois, com o
andar do protesto, passou a atacar os caminhantes qualificando-os como
golpistas, aliados da direita. A confusão de conceitos – ora eram esquerda
infantil, ora eram direita – conseguiu mobilizar os partidário do governo e
eles também organizaram atos visando desmontar a apoteose da chegada da marcha
no dia 22.
E foi o
que se viu em Quito. No Dia Mundial da Água, quando os caminhantes entraram na
cidade, já os esperavam também grandes manifestações pró-Correa, inclusive em
frente ao palácio governamental.
Ora, a
marcha promovida pelos indígenas não era uma marcha contra o presidente ou
visando dar qualquer golpe contra o governo constitucionalmente eleito. Era uma
manifestação, como tantas vezes foram feitas, de luta pelas demandas dos povos
originários e dos trabalhadores. Tudo o que queriam era uma conversa que
colocasse para andar o acordo firmado com o próprio Correa em outubro de 2010,
quando outra marcha lograra fazer com que o presidente aceitasse estabelecer um
cronograma de ações em defesa da água.
Ocorre que
dos 19 pontos acordados quase nada saiu do papel. Pelo contrário. Conforme
denuncia o prefeito de Zamora, Salvador Quispe, várias empresas mineradoras
começaram a atuar em áreas de segurança nacional, o que é proibido pela
Constituição. Também outras empresas se estabeleceram em áreas indígenas sem a
realização de uma consulta às comunidades, outro flagrante desrespeito à
Constituição. Então, ou a Constituição é para ser cumprida ou não. Não dá para
cumprir alguns artigos e outros não. Esse era o ponto sobre o qual os
caminhantes queiram abrir conversação. Não foi sem razão que a marcha terminou
em frente à Assembleia Nacional, onde os manifestantes exigiram o cumprimento
da carta magna.
É fato que
alguns setores ligados à direita equatoriana se juntaram à marcha de forma
oportunista, como é comum nesses casos. Mas, isso não pode significar que os
que lutam pela água e pelo cumprimento da lei sejam golpistas. Há que separar o
joio do trigo. O fato de haver grupos, como os indígenas, que não concordam com
tudo o que faz Correa não significa que sejam desestabilizadores do regime.
Pelo contrário. O que querem é que as propostas construídas na Constituinte
popular sejam respeitadas.
Mas, o que
se viu em Quito foi a indução ao demonismo. Como se fazer oposição, por si só,
fosse uma ação golpista. Aqui no Brasil vivemos isso na pele quando o
presidente Lula, então um ícone popular, levou adiante a reforma da previdência
que retirava direitos dos trabalhadores. Parte da esquerda, em apoio total ao
governo, acusava de fazer o “jogo da direita” aqueles que “ousavam” se levantar
em críticas e protestos contra a lei saída de dentro do executivo e que tanto
prejuízo trouxe aos trabalhadores.
No caso do
Equador, a questão das lutas indígenas é algo que precisa de muita compreensão.
As comunidades originárias estão submetidas à outra lógica, completamente fora
dos padrões de direita e esquerda da cultura ocidental. Mirá-las com essas
lentes fatalmente leva ao erro. O núcleo ético/mítico das culturas autóctones
tem a água como ponto nodal. É nas nascentes dos rios que nascem os deuses, é
no leito deles que muito moram, então, destruir a água é destruir as
comunidades como cultura e vida. Não compreender isso é perder a batalha da
constituição de um estado plurinacional.
Muitas
vezes na história do Equador comunidades indígenas estiveram do lado de
políticos de direita, porque esses, de certa forma, acabavam fazendo-os crer
que os respeitavam. Coisa que Correa não tem sabido fazer. Com sua maneira
arrogante de tratar as demandas indígenas o presidente inclusive vai empurrando
as comunidades para a direção dos aproveitadores – esses sim interessados em
desestabilizar o governo. Desqualificar os manifestantes chamando-os ora de
golpistas ora de esquerda infantil não ajuda em nada no processo. E o fato concreto
é que a mineração avança no Equador, e avança ferindo a lei, com o aval do
governo. Isso é real, não é história da direita.
No dia 22,
vários representantes do governo estiveram na televisão, que transmitia a cada
minuto detalhes da marcha e das manifestações pró-Correa. E todos eles, sem
exceção, em vez de discutir o tema em questão, que era a defesa da água,
preferiram desqualificar os líderes da marcha. O prefeito de Zamora era o mais
citado. Segundo alguns dos entrevistados, Salvador Quispe era um hipócrita,
falando contra as mineradoras quando ele mesmo já havia trabalhado em minas. Um
completo disparate, porque nenhum dos indígenas que lutam pela água é contra a
mineração. O que eles querem é que a atividade não venha destruir o ambiente,
que as empresas não se instalem de forma ilegal. Ou seja, querem participar sim
do processo e dos lucros que a atividade venha a oferecer. A pergunta é? Por
que é indecente os indígenas quererem ganhar com a mineração? Por que só as
empresas estrangeiras podem ganhar? O território é indígena e se dali sair o
ouro, a prata ou qualquer outro mineral os indígenas tem todo o direito de
receber o que lhes é devido. E certamente seriam melhores mineradores porque
conhecem seu ambiente e respeitam sua cultura. Então, esse é um falso debate.
A marcha
pela água realizada por indígenas e outros setores da sociedade foi uma
caminhada de alerta para que a lei de águas incorpore as demandas discutidas
pelas comunidades. Foi uma cobrança do acordo firmado que segue sem resposta. Foi
uma demonstração de que existem setores ainda capazes de realizar a crítica em
defesa do sonho construído na Constituinte popular. Ao presidente Correa seria
recomendável um pouco mais de respeito para com aqueles que sabidamente não se
enquadram na dicotomia direita/esquerda. Conquistar os setores indígenas é bom
para Correa, mas tem de ser feito com o cumprimento das promessas e não com
bravatas.
Já a velha
direita golpista e reacionária, essa é facilmente identificável e é bem fácil
reconhecê-la mesmo quando se infiltra nos movimentos populares, fazendo – essa
sim – a luta contra Correa. Aos indígenas pouco se lhes dá quem está na
presidência. Eles querem fazer avançar o bem-viver, a proposta de vida
digna e boa para todos. Aos olhos da esquerda tradicional isso pode parecer uma
heresia, mas não é. Antes da condenação é preciso que os intelectuais e
militantes de esquerda tentem entender de verdade a cosmovisão dos povos
autóctones. Com certeza aprenderiam muito e poderiam avançar com mais aliados na
busca pelo socialismo.