segunda-feira, 26 de março de 2012

Equador: a marcha pela água e os chamados golpistas


Desde o dia 08 de março, uma caminhada de indígenas e militantes sociais de várias tendências esteve percorrendo o Equador desde a cidade de Zamora até a capital, Quito
Elaine Tavares*
Desde o dia 08 de março, uma caminhada de indígenas e militantes sociais de várias tendências esteve percorrendo o Equador desde a cidade de Zamora até a capital, Quito. Foram 14 dias de caminhada, passando pelas cidades, conversando com a população. A pauta principal era a defesa da água, ameaçada pelas mineradoras, mas à marcha acabaram se somando outras consignas como a dos trabalhadores públicos em luta contra o desemprego e a da população indignada com os altos impostos, entre outras.
Ao longo da caminhada foi se formando também um caldo de demonização da marcha. O alvo principal acabou sendo a comunidade indígena, principal impulsionadora da luta pela água, que tem vivido na pele a destruição dos rios que são sagrados para ela. O primeiro a criar o clima de animosidade foi o próprio presidente Rafael Correa que tão logo soube da caminhada declarou que não deixaria a “esquerda infantil, com plumas e com ponchos” desestabilizar seu governo. Depois, com o andar do protesto, passou a atacar os caminhantes qualificando-os como golpistas, aliados da direita. A confusão de conceitos – ora eram esquerda infantil, ora eram direita – conseguiu mobilizar os partidário do governo e eles também organizaram atos visando desmontar a apoteose da chegada da marcha no dia 22.
E foi o que se viu em Quito. No Dia Mundial da Água, quando os caminhantes entraram na cidade, já os esperavam também grandes manifestações pró-Correa, inclusive em frente ao palácio governamental.
Ora, a marcha promovida pelos indígenas não era uma marcha contra o presidente ou visando dar qualquer golpe contra o governo constitucionalmente eleito. Era uma manifestação, como tantas vezes foram feitas, de luta pelas demandas dos povos originários e dos trabalhadores. Tudo o que queriam era uma conversa que colocasse para andar o acordo firmado com o próprio Correa em outubro de 2010, quando outra marcha lograra fazer com que o presidente aceitasse estabelecer um cronograma de ações em defesa da água.
Ocorre que dos 19 pontos acordados quase nada saiu do papel. Pelo contrário. Conforme denuncia o prefeito de Zamora, Salvador Quispe, várias empresas mineradoras começaram a atuar em áreas de segurança nacional, o que é proibido pela Constituição. Também outras empresas se estabeleceram em áreas indígenas sem a realização de uma consulta às comunidades, outro flagrante desrespeito à Constituição. Então, ou a Constituição é para ser cumprida ou não. Não dá para cumprir alguns artigos e outros não. Esse era o ponto sobre o qual os caminhantes queiram abrir conversação. Não foi sem razão que a marcha terminou em frente à Assembleia Nacional, onde os manifestantes exigiram o cumprimento da carta magna. 
É fato que alguns setores ligados à direita equatoriana se juntaram à marcha de forma oportunista, como é comum nesses casos. Mas, isso não pode significar que os que lutam pela água e pelo cumprimento da lei sejam golpistas. Há que separar o joio do trigo. O fato de haver grupos, como os indígenas, que não concordam com tudo o que faz Correa não significa que sejam desestabilizadores do regime. Pelo contrário. O que querem é que as propostas construídas na Constituinte popular sejam respeitadas.
Mas, o que se viu em Quito foi a indução ao demonismo. Como se fazer oposição, por si só, fosse uma ação golpista. Aqui no Brasil vivemos isso na pele quando o presidente Lula, então um ícone popular, levou adiante a reforma da previdência que retirava direitos dos trabalhadores. Parte da esquerda, em apoio total ao governo, acusava de fazer o “jogo da direita” aqueles que “ousavam” se levantar em críticas e protestos contra a lei saída de dentro do executivo e que tanto prejuízo trouxe aos trabalhadores.
No caso do Equador, a questão das lutas indígenas é algo que precisa de muita compreensão. As comunidades originárias estão submetidas à outra lógica, completamente fora dos padrões de direita e esquerda da cultura ocidental. Mirá-las com essas lentes fatalmente leva ao erro. O núcleo ético/mítico das culturas autóctones tem a água como ponto nodal. É nas nascentes dos rios que nascem os deuses, é no leito deles que muito moram, então, destruir a água é destruir as comunidades como cultura e vida. Não compreender isso é perder a batalha da constituição de um estado plurinacional.
Muitas vezes na história do Equador comunidades indígenas estiveram do lado de políticos de direita, porque esses, de certa forma, acabavam fazendo-os crer que os respeitavam. Coisa que Correa não tem sabido fazer. Com sua maneira arrogante de tratar as demandas indígenas o presidente inclusive vai empurrando as comunidades para a direção dos aproveitadores – esses sim interessados em desestabilizar o governo. Desqualificar os manifestantes chamando-os ora de golpistas ora de esquerda infantil não ajuda em nada no processo. E o fato concreto é que a mineração avança no Equador, e avança ferindo a lei, com o aval do governo. Isso é real, não é história da direita.
No dia 22, vários representantes do governo estiveram na televisão, que transmitia a cada minuto detalhes da marcha e das manifestações pró-Correa. E todos eles, sem exceção, em vez de discutir o tema em questão, que era a defesa da água, preferiram desqualificar os líderes da marcha. O prefeito de Zamora era o mais citado. Segundo alguns dos entrevistados, Salvador Quispe era um hipócrita, falando contra as mineradoras quando ele mesmo já havia trabalhado em minas. Um completo disparate, porque nenhum dos indígenas que lutam pela água é contra a mineração. O que eles querem é que a atividade não venha destruir o ambiente, que as empresas não se instalem de forma ilegal. Ou seja, querem participar sim do processo e dos lucros que a atividade venha a oferecer. A pergunta é? Por que é indecente os indígenas quererem ganhar com a mineração? Por que só as empresas estrangeiras podem ganhar? O território é indígena e se dali sair o ouro, a prata ou qualquer outro mineral os indígenas tem todo o direito de receber o que lhes é devido. E certamente seriam melhores mineradores porque conhecem seu ambiente e respeitam sua cultura. Então, esse é um falso debate.
A marcha pela água realizada por indígenas e outros setores da sociedade foi uma caminhada de alerta para que a lei de águas incorpore as demandas discutidas pelas comunidades. Foi uma cobrança do acordo firmado que segue sem resposta. Foi uma demonstração de que existem setores ainda capazes de realizar a crítica em defesa do sonho construído na Constituinte popular. Ao presidente Correa seria recomendável um pouco mais de respeito para com aqueles que sabidamente não se enquadram na dicotomia direita/esquerda. Conquistar os setores indígenas é bom para Correa, mas tem de ser feito com o cumprimento das promessas e não com bravatas.
Já a velha direita golpista e reacionária, essa é facilmente identificável e é bem fácil reconhecê-la mesmo quando se infiltra nos movimentos populares, fazendo – essa sim – a luta contra Correa. Aos indígenas pouco se lhes dá quem está na presidência.  Eles querem fazer avançar o bem-viver, a proposta de vida digna e boa para todos. Aos olhos da esquerda tradicional isso pode parecer uma heresia, mas não é. Antes da condenação é preciso que os intelectuais e militantes de esquerda tentem entender de verdade a cosmovisão dos povos autóctones. Com certeza aprenderiam muito e poderiam avançar com mais aliados na busca pelo socialismo.
Elaine Tavares é jornalista. Publicado originalmente no sítio do Brasil de Fato
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